sexta-feira, 4 de maio de 2012

O amigo de Caymmi


Ele não desistiria, tenho certeza. Partiria mil vezes, regressaria outras tantas se necessário, mas não abandonaria o mar. Da sua janela podia ouvir o quebrar das ondas e as sentia intensamente, como um  beijo na areia. Podia ouvir a marujada, o porto, o ir e vir de tantas embarcações. Ouvia, e se pudesse estaria em todas elas, o sal no rosto, o sol, cuidaria do velame e do cordame como nenhum outro, marinheiro que foi desde os tempos dos saveiros. Conhecia os segredos do mar, a rota entre Ilhéus e Valença, os caminhos até Salvador, para onde levava farinha do Engenho de Santana, trazendo de volta tecidos e bugigangas para as esposas e rabos de saia dos últimos coronéis.
Achava bom escutar o mar, sobretudo quando anoitecia. O barulho das ondas ecoando como se de dentro de um búzio lhe fazia muito bem. Podia sentir a maresia e o tumulto interior em que vivia trazia de volta as lembranças mais ternas e os amigos, as viagens, os perigos, as tempestades e as amantes, especialmente Tereza Maria, segundo ele, a cabocla mais fogosa e meiga de toda Ilhéus. Era ela quem sossegava seu coração depois das longas viagens. Ele dizia que ela o esperava toda enfeitada, de vestido longo, engomado, uma flor de hibisco presa entre os longos cabelos negros e ondulados, perfume de alfazema e o corpo ardente, muito embora soubesse que homem do mar jamais será homem de alguém.
Pudesse, faria tudo novamente, correria os mesmos perigos, passaria pelas mesmas tormentas, mares revoltos, dificuldades. Teria os mesmos prazeres. Em cada porto um novo corpo, em cada corpo uma paixão passageira. Não era de arrependimentos, ainda que seus dois filhos estivessem pelo mundo. “O mar, mesmo ferindo, consola”. “Eles estão por aí, embarcados, de navio em navio, nessas águas que são de todos e não são de ninguém”. “São marinheiros como o pai e algum dia vão retornar, pois toda planta sabe em que terras estão fincadas as suas raízes”. Gostava do mar como da própria vida.
Não fosse a cegueira...
Maldita, a cegueira o impedira de navegar. Decorrida de uma lesão provocada por uma queda idiota, o problema se agravou com o diabetes. Ele foi perdendo a capacidade de identificar as cores, depois, a vista embaçada, até que um dia deixou de perceber qualquer sinal da luz.
Daí por diante, cada vez mais, estava parecido a barcos no estaleiro, a cordas que de tão usadas não sustentam a vela e ameaçam se romper. Já não mantinha o orgulho de exibir os imponentes calos nas mãos, o rosto enrugado, a pele massacrada, a magreza saudável e benfazeja, típica de quem se alimenta basicamente de peixes e frutos do mar.
Já não contava histórias...
Verdadeiras ou não, todos no cais as conheciam. A que mais impressionava era a da barracuda que pulou sobre o barco e o atacou mordendo seu braço. Sozinho e sangrando muito, contava que mesmo extremamente exausto e apavorado conseguiu sacar uma faca e matar aquele peixe de mais de um metro e oitenta, o corpo alongado e a cabeça terminando em uma boca enorme, abarrotada de dentes afiados, cravados em seu corpo. Ele trouxe o peixe consigo até a praia, como se fosse um troféu, depois desmaiou.
Quando acordou, após três dias e três noites de febre, encontrou a negra Maria das Dores ao seu lado, como se fosse a sua mãe, rezando por ele e cuidando a ferida. Ela o amava mais que tudo e não deixou ninguém se colocar no seu lugar. Embora seu amor não fosse correspondido, nunca havia perdido a fé em Nossa Senhora dos Navegantes, a quem prometera abandonar o Beco das Marafonas se aquele homem dormisse com ela uma noite. “Uma noite apenas”, dizia em voz alta para si mesma. Uma única oportunidade que tivesse e o faria se apaixonar. Mesmo desfalecido, em uma atitude tresloucada, ela aventurou sugar seu pênis, mas gostaria mesmo é que ele a domasse, como sempre fez aos barcos.
A enorme cicatriz deixada pela barracuda havia se transformado na marca da sua existência, a cegueira o seu maior castigo e o mar imenso a sua última obsessão. Vivia de frente para ele, mas voltar a navegar parecia uma realidade cada dia mais distante. Mesmo assim, jurava, ainda cego voltaria para o mar, não importava o modo, era a derradeira coisa que pretendia fazer na vida. Sempre dizia isso, principalmente quando o vento fresco invadia sua janela e lhe acertava o rosto em cheio. Era uma sensação semelhante a que sentia quando estava navegando. Ele se emocionava, chorava como qualquer um de nós.
Sei também que possuía muitos amigos: marinheiros, pescadores, inclusive gente que não era do mar. Alguns até bastante conhecidos, como o Caymmi, por exemplo. Havia na casa dele, afixado na parede branca, pintada a cal, e ocupando lugar de destaque, uma enorme fotografia dos dois abraçados na praia. O que contam no cais é que a canção “O bem do mar” foi feita inspirada nele. Se verdade eu não sei, não afirmo nem confirmo, mas por causa da cegueira, uma ideia doida o acompanhava, essa ideia tem tudo a ver com outra música de Caymmi, nela tem uma passagem que diz o seguinte:

É doce morrer no mar,
Nas ondas verdes do mar.

Quando o conheci, ele estava sentado na areia da praia, os braços envolvendo os joelhos, o tronco levemente curvado à frente, reflexivo e calmo. Ao perceber minha presença, pediu que o ajudasse a chegar à água. Peguei em sua mão e no movimento para levantar, percebi seus bolsos repletos de pedras. Perguntei, então, para que serviriam. Ele me revelou, sem cerimônia, que havia chegado à hora de cumprir a sua sina, seu grande desejo, e eu lhe faria um enorme favor, o maior que alguém poderia lhe prestar: se não podia mais navegar, ao menos se enterraria como um verdadeiro marinheiro. E como na música, me disse, iria fazer sua “cama de noivo no colo de Iemanjá”. Espantado e atônito, contra a sua vontade, o reconduzi sentado à areia. Conversamos. Foi quando me contou a sua história e falou da amargura que sentia.
Fiquei muito comovido, naturalmente. E fiz de tudo, lancei mão de todos os argumentos a fim de lhe demover daquela ideia absurda, até o convencer a voltar para a sua casa, não sem antes fazer um juramento, o de recuperar Sol Nascente, seu barquinho, que estava apodrecendo e criando mato lá no seco.
Eu poderia nunca ter voltado a procurar aquele velho. Poderia simplesmente esquecer e não cumprir o juramento, afinal, sempre trouxe comigo muitos afazeres, mulher e duas filhas para terminar de criar. Além disso, moro muito longe dali. E antes de pensarem que o conhecia, devo dizer: até então jamais havia visto aquele senhor uma única oportunidade em minha vida.
No dia seguinte voltei à sua casa com alguns apetrechos: massa corrida acrílica, formão, folhas de compensado naval, serrote, martelo, pregos, zarcão, fio para calafeto e algumas chaves de boca. Também levei um punhado de lixas e latas de esmalte sintético. Ele recomendou fossem de três cores: azul, vermelha e branca, as cores do Bahia, seu time de coração. Com a ajuda de algumas pessoas consegui colocar o barquinho em um cavalete e comecei a cumprir o prometido. Recompus primeiramente o assoalho e o calafetei, depois foi a vez dos bancos e remos. Lixei todo o madeirame, gravei o escudo do tricolor de aço nos dois lados da embarcação. Cuidei de tudo como se fosse meu. Ao final do terceiro dia, Sol Nascente parecia novinho, novinho. Dava gosto de ver.
Havia chegado o grande momento, a oportunidade de colocarmos Sol Nascente novamente no mar; dia em que aquele velho marinheiro voltaria a sentir os respingos da água salgada e a força do vento, a agitação do barquinho com o movimento das ondas, o canto das gaivotas. Eu, que também sou marinheiro, posso falar: tudo isso junto se constitui na melhor e mais perfeita sensação de liberdade que um homem pode experimentar, e seu semblante traduzia a satisfação que estava sentindo.
Eram sete horas da manhã de uma sexta-feira ensolarada. O céu estava limpo, a maré baixa e a temperatura amena. Tudo era uma calmaria só. Vestíamos branco, como manda a tradição. Eu, com o meu calção de banho e uma camisa de botões. Ele, muito bem trajado, como se fosse a alguma festa: calça e camisa de linho, óculos escuros e quepe na cabeça.  Me sentia afortunado por poder devolver um pedaço de alegria àquele velho marinheiro.
Alguns pescadores me ajudaram a colocar o barquinho na água, o fazendo deslizar sobre alguns rolos de madeira. O velho, àquela altura, era todo apreensão, mesmo estando bem acomodado dentro dele. Quando não havia mais perigo de encalhar, fiz o movimento para subir. Segurei nas bordas do Sol Nascente, que pendeu um pouco de lado, mas qual não foi a minha surpresa quando percebi o velho me atacando com um dos remos, tentando impedir minha subida.
Gritei com ele, pedindo que parasse, mas os golpes continuavam a vir de todas as direções. Eram golpes duros, me acertavam na cabeça, nos braços e nas mãos. Um deles me feriu no ombro, fazendo um corte profundo e minando de vez a minha resistência. Foi quando soltei as mãos da borda e o deixei seguir. “Deus lhe pague, meu filho. Deus lhe pague”, ouvi o velho dizer repetidas vezes enquanto se afastava, remando na direção do horizonte.
 Da areia, um tanto aturdido, eu o observava. Uma imagem fugaz aparecia e se escondia no vai-vem das águas. Algumas lágrimas começaram a brotar e um choro convulsivo tomou conta de mim. Poderosos espasmos de tristeza e alegria se misturaram fazendo meu corpo todo soluçar. Tomados pela emoção, os pescadores que me ajudaram a devolver o barquinho ao mar se juntaram a mim. Ficamos em silêncio, admirados com a perspicácia do velho. Afinal, ele estava fazendo o que pretendia desde sempre: se enterrar como um verdadeiro marinheiro.
Fiquei pouco à vontade ao perceber que estava cercado cada vez por mais gente. Por isso me afastei um pouco do tumulto e descansei meus olhos no infinito. Absorto, em minha memória apenas a voz do velho a me agradecer: “Deus lhe pague, meu filho. Deus lhe pague”.

*Conto vencedor do Prêmio Yoshio Takemoto de Literatura (SP). Selecionado para publicação pelo comitê do Prêmio Maximiniano Campos (PE).

2 comentários:

Henrique Wagner disse...

Incrível maturidade, a sua. Escrita segura, sem pressa, conto bem desenvolvido, num formato incomum entre os de sua geração, quase todos dados à ideia sem desenvolvimento, a uma prosa "fragmentada" que não se sustenta, e tentativas de ousadias formais todas terceirizadas. Uma bela homenagem a nosso grande contador de histórias grapiúna. Parabéns.

Cris Bezerra disse...

Que conto bonito...enquanto lia tinha a sensação de escutar Caymmi, lembrei-me de um trecho de sua música que diz"O mar... pescador quando sai Nunca sabe se volta, nem sabe se fica. Quanta gente perdeu seus maridos seus filhos nas ondas do mar".Nesse caso não foi o mar que levou o marinheiro, foi um reencontro de vidas.
Parabéns Gustavo!!!
Cristina Bezerra