O escritor Ariano Suassuna fará palestra no dia 8 de junho, no Salão
Nobre da reitoria da Universidade Federal da Bahia, às 19h30, dentro da programação do
‘Diálogos Universitários’. Defensor ardoroso da preservação de manifestações
culturais nacionais, motivo pelo qual vive em constante conflito teórico com o
que se convencionou chamar ‘globalização’, o escritor vai responder a perguntas
e, de fato, dialogar com os presentes sobre esse e outros temas.
O
Maçambicano Mia Couto tornou-se nos últimos anos um dos ficcionistas mais
conhecidos da literatura de língua portuguesa. O que pouca gente sabe –
sobretudo no Brasil – é que sua primeira publicação, em 1986, foi “Raíz de
Orvalho”, um livro de poesia. De lá para cá publicou outros 21 livros, todos em
prosa e em vários gêneros, entre eles romance, conto, crônica, ensaio. Em 2007
voltou à poesia com “Idades, Cidades, Divindades”.
Nada
disso eu saberia se o meu amigo Pedro Montalvão, de volta de Portugal, não me
trouxesse um ótimo presente, o livro “Tradutor de Chuvas”, o mais recente desse fabuloso Mia
Couto, a quem estive lendo nas últimas duas manhãs, peito nu e pé no chão, em
uma praia tranquila aqui de Ilhéus.
Percebe-se que o livro tem muito de
autobiográfico e uma linguagem cotidiana, no mesmo nível da fala comum, o que
não limita seu discurso que se encontra eivado de metáforas.
Pretendo voltar a postar algumas das minhas impressões sobre a poesia de Mia Couto, mas por enquanto deixo para
os leitores aquilo que em “Tradutor de Chuvas” até o momento mais me encantou.
Dia 21, sábado, fez dois anos que Zé Rodrix
faleceu. Lembro-me claramente que a notícia – indesejada – pegou muita gente de
surpresa, pois foi a morte precoce de um grande intéprete, compositor,
publicitário e romancista tão querido, um homem de grande sensibilidade e com o
qual tive a oportunidade de mater um relacionamento fraterno. Talvez essa
entrevista, datada de 20 de novembro de 2008, tenha sido a última que Zé Rodrix
concedeu por escrito.
Gustavo Felicíssimo – Zé, em que momento você acredita que suas atividades como compositor,
publicitário e romancista se amalgamam?
Zé Rodrix– O tempo todo. Não vejo nenhuma
diferença essencial entre nenhum processo de criação, porque a criação é um
ambiente contínuo no qual eu me movo de modos diferentes, adequando minhas
ferramentas criativas para o objetivo desejado. A meu ver, nenhuma atividade
criativa pode ser considerada mais elevada ou menos importante que a outra, por
mais que exista preconceito de quem as observa, na maior parte das vezes sem
saber do que se trata. Estar em pleno exercício criativo é a minha regularidade
diária, sem a qual eu não seria eu mesmo: criar como forma de sobrevivência do
corpo, da mente e do espírito, evoluindo, crescendo e me modificando a cada
instante, tornando-me finalmente o objeto que surge da minha própria criação,
através daquilo que eu realizo. Meus romances, minhas canções e meus jingles
são facetas diversas de minha própria capacidade criativa, assim como meus
desenhos, pinturas, peças teatrais e até poemas, cada um ocupando o seu espaço
específico no mundo real, mas todos partindo de uma mesma fonte original, eu
mesmo.
GF – Há quem diga que a música popular foi quem tomou o espaço já diminuto
da poesia. O que você acha dessa afirmação?
ZR – O equívoco,
a meu ver, é dos poetas, que de maneira geral têm tido inveja do aparente
sucesso popular dos músicos, e se dispuseram a enfiar a sua poesia de maneira
artificial na seara musical, prejudicando tanto a poesia quanto a música. Não
creio que exista nenhuma semelhança entre poesia e letras de música, por
exemplo: são objetos artísticos perfeitamente diversos e diferentes, apesar de
partilharem algumas semelhanças no uso da língua e dos truques criativos. A
partir de determinado momento, quando letristas passaram a ser chamados de
poetas, (equivocadamente, a meu ver) os poetas se sentiram à vontade para se transformarem
em roqueiros, usando a música popular como veículo para sua poesia que, de
maneira geral, funciona muito mal quando cantada, mas seria excelente se
permanecesse nos limites reais da poesia escrita. Agora, vai ser preciso
muita coragem da parte dos poetas para romper este vício da popularidade e
retomarem seu processo poético original, de forma a recuperar o verdadeiro
valor da poesia, pois, como disse Fernando Pessoa, “a popularidade é um
plebeísmo”. Insuportável para a tão necessária verdade e permanência poética.
GF – Você acredita em um processo de alienação das massas provocado por
uma possível e anunciada “ditadura midiática”? Essas questões chegam a te
incomodar?
ZR – De forma
geral, esta “ditadura midiática” é papo muito velho, herdado do Manifesto do
CPC da UNE em 1962, que já era cópia quase fiel do Manifesto por Um Realismo
Socialista, de Jdanov, escrito na URSS em 1947. Nela se estabelecem como inimigos
todos os processos de abrangência comercial da arte tanto burguesa quanto
popular, descartando tanto a “arte burguesa’ quando a “arte popular” com sendo
veículos de alienação, e pregando a necessidade de uma “arte popular revolucionária”,
que nunca existiu realmente, a não ser como as experiências artificialíssimas
da MPB, seguindo os passos de uma “brasilidade” estabelecida pela outra
ditadura, a de Getúlio Vargas.
A tentativa de estabelecer um “padrão popular” de música feita no Brasil, por
exemplo, já tinha sido intentada por Lourival Fontes, diretor do DIP
durante o Estado Novo, e este padrão de “brasilidade” é uma barreira que
permanece ainda vigente como parâmetro dos artistas nacionais, porque foi
assumido como sendo “real” pelo manifesto da UNE, que preferiu a ditadura de
Vargas à Ditadura Militar, pretendendo que a primeira fosse melhor que a
segunda, no que se equivocaram profundamente.
O sistema de comunicação midiática mundial já pretendeu ser dono das
vontades de todos, menos de quem o critica, ainda que quem o critique também
esteja sob a égide de uma mídia específica e tão daninha quanto a que verbera.
Acusar a mídia por todas as mazelas do mundo, menos as próprias, indica apenas
um desconhecimento profundo das possibilidades humanas de livre-arbítrio,
escolha, e capacidade de decisão. Tudo está, a meu ver, nos limites da consciência
e responsabilidade pessoais, e para entender isto seria preciso estudar
com atenção o momento em que Sartre, tendo durante algum tempo proposto como
ideal a figura do “artista engajado”, a substituiu pela do “artista
consciente”, já no fim de sua vida.
A Arte não está sob o controle de nenhuma mídia, se verdadeiramente for
Arte, e nem os usuários desta mídia se tornam escravos dela, principalmente
agora que a revolução tecnológica permite a livre expressão das
individualidades através da escolha pessoal. Há inúmeros artistas que,
filiando-se a esta ou aquela escola, se consideram mais artistas que outros de
outras escolas, ao mesmo tempo em que partilham de práticas e usos que condenam
em seus desafetos, aplaudindo-os em si mesmos como “exemplo de pragmatismo
ideológico”. Dois pesos, duas medidas, infelizmente valorizados e divulgados
como sendo ideais pelos que chamo de Perpetuadores dos Dogmas e Defensores dos
Mitos, estes que, sendo parte da mídia, se especializaram em expor seu gosto pessoal
ou filiação ideológica como sendo a Única Verdade, tornando-se divulgadores de
seu próprio e equivocado Evangelho, tentando convencer a quem os ouve de que a
Arte de que gostam nos foi doada diretamente por Deus e que todas as outras são
imitações diabólicas desta.
Os seres humanos, atualmente, e a cada dia mais, têm infinitas formas de
fazerem suas próprias escolhas, através das liberdades individuais, deixando-se
envolver por aquilo que os agrada e rejeitando aquilo que os desagrada, por
mais que as teorias vigentes ainda insistam em nos impor o gosto por
aquilo de que não gostamos, como necessidade de sobrevivência da “kultura”.
Neste sentido, as classes populares são muito mais livres, porque em seu território
possível, selecionam e elegem como sendo SUAS as formas de Arte que lhes tocam
mais de perto, em vez de seguirem, obedientemente, os parâmetros que algum
evangelista lhes imponha como sendo os únicos possíveis, da maneira como a
classe média tem feito.
Manuel
da Costa Pinto, curador da FLIP, apresentou na manhã de hoje, dia 19, a programação
completa da 9ª edição da festa. O crítico Antonio Candido, para a felicidade
geral dos amantes da literatura, fará mesmo a abertura, oportunidade em que falará
sobre Oswald de Andrade, o homenageado na festa.
Confira
a programação completa da Flip, Flipinha e Flipzona CLICANDO AQUI.
A
notícia da Folha de S. Paulo (18/05) dá conta de que o principal crítico
literário vivo do país, Antonio Candido, 92, pode ser uma grata surpresa da
próxima Flip. Convidado a falar sobre Oswald de Andrade, ele estuda a possibilidade
e adianta que "foi um convite muito gentil, mas ainda não me decidi, por
causa da minha saúde e da minha idade. Fiquei de pensar, estou pensando",
disse. De minha parte, espero que ele aceite, pois estarei lá.
Potes
de tinta, pincéis, cola, papel e estiletes são todo o material necessário para
transformar papelão em capas de obras de autores como Alan Pauls, Fabián Casas,
Glauco Mattoso e Haroldo de Campos. Esta é a proposta de Eloísa Cartonera, uma
editora independente e auto-gerida, criada em 2003, ano em que a Argentina
sofria as repercussões do colapso político-econômico do país em 2001.
Artigo
de Miguel Sanches Neto sobre Esta poesia e mais outra, do crítico Felipe
Fortuna.
O
crescimento da oferta de livros fez com que se criassem micro campos de poder
literário altamente excludentes, em que aparecem apenas os afiliados de uma
linguagem, de uma ideologia ou de um credo artístico. Eis o principal problema
sofrido hoje pelo autor avesso à vida gregária. Leia mais clicando AQUI.
A
Torre de Babel, feita pela artista Marta Minujín com 30 mil livros de todas as
partes do mundo foi inaugurada oficialmente e pode ser visitada até o dia 27. A
iniciativa faz parte das atividades em celebração ao título de Capital Mundial do Livro, conferido
pela Unesco à Buenos Aires em 2011. A torre é uma obra de arte urbana e efêmera
de 38 metros de altura e oito pisos e foi feita com livros de 54 países. No
último dia, os visitantes poderão levar os livros. Os que sobrarem serão usados
na biblioteca Babel, que será construída.
A poesia, ao contrário
do que pensam muitos, representa muito para o nosso Brasil.
A poesia, em nosso País, sempre foi algo muito forte, ligada demasiadamente à
construção de nossa nação, à nossa idéia de brasileiros, à identidade
brasileira. O problema é que, de uns tempos para cá, alguns critérios muito
básicos vêm mudando radical e erroneamente. Exceto por uma duas dúzias de
esmerados perdidos por nosso vasto território, a cultura, que, no Brasil, um
dia, se chamou de erudita, é quase uma alucinação. Daí, um dos grandes
problemas de nossa atual sociedade: desaprender o sentido, tanto teórico quanto
prático, da palavra “critério”, ou mesmo “juízo” e “discernimento”. E a poesia,
principalmente a contemporânea, acabou sofrendo muito com isso, também. Assim, me
pergunto ou se me perguntam se a nossa poesia vai bem, é claro que vai, sempre
foi maravilhosa.
Clique
AQUI e conheça o texto integral no blog do Silvério Duque.
Intitulado “Fernando Pessoa - Cartas
Astrológicas”, o livro reúne “algumas dezenas das mais reveladoras cartas
astrológicas erigidas por Pessoa”, escreve o astrólogo Paulo Cardoso. Jerónimo
Pizarro, catedrático nas universidades de Lisboa e de Los Andes (Colômbia) que
prefacia a obra, afirmou à Lusa que esta obra “abre novas pistas de
investigação, e demonstra como a teoria dos heterónimos é influenciada pela
astrologia”. LEIA MAIS.
Eu, que a bem pouco tempo
atrás sequer cogitava a hipótese de ser pai, tenho a oportunidade de comemorar hoje
o primeiro aninho de minha filha, Flora, justamente no dia das mães, a família
unida, e em paz. Pra completar, nesta segunda-feira (09) faço 40 anos. Nada
muda, é verdade, mas a felicidade é imensa.
No
último dia 02 de maio o teatro brasileiro perdeu um de seus principais
protagonistas. Falo de Zé Renato, fundador do Teatro de Arena e diretor de
inúmeros clássicos, entre os quais se destaca “Eles não usam black-tie”. Para
conhecer sua trajetória, que se mistura à própria história do teatro
brasileiro, basta fazer o download gratuito de sua biografia escrita por Hersch Basbaum para a Coleção
Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. O título, Energia eterna,
traduz bem o biografado. Poucas horas antes de sua morte, Zé Renato subiu ao
palco do Teatro Imprensa para encenar “Doze homens e uma sentença” e seguiria
viagem para o Rio de Janeiro naquela mesma noite.
Duplo
sentido é uma figura de linguagem na qual uma frase ou expressão pode ser
entendida de duas maneiras distintas, com a intenção de provocar humor ou
ironia. Tal recurso há muito tempo vem sendo utilizado na música brasileira, em
alguns momentos com grande maestria, como fez Chico Buarque durante a ditadura,
desafiando a (des) inteligência da censura. Um bom exemplo é Apesar de você,
uma canção de protesto com mensagens subliminares contra o presidente Médici.
É
bem verdade que Chico enviou a letra ao órgão crendo que ela seria vetada, mas
como foi liberada, lançou-se um compacto com Apesar de você de um lado e
Desalento de outro. Em uma semana cem mil cópias foram vendidas e a música já
era adotada como hino de resistência aos militares quando um jornal publicou
uma nota dizendo que o “você”, na verdade, era o general Médici. A música foi
proibida de ser executada e todos os compactos recolhidos e queimados.
Nos
dias de hoje, talvez pela falta de um inimigo público declarado, apesar de
tantos estarem por aí vestidos em pele de carneirinhos, esse tipo de letra está
descambando (se já não descambou) para a pornografia e total exploração da
alienação do povo.
No
momento, infelizmente, a música baiana está impregnada tanto por imbecis quanto
por uma mídia indulgente, comparsas no processo de insanidade e imbecilização
do povo, irmanados que estão por laços indissociáveis.
Escrevo
sobre esse tema depois de ter assistido a um VÍDEO onde a cantora Margareth
Menezes critica veementemente esse tipo de comportamento, tanto dos músicos
quanto dos ouvintes, mas também porque achei que nada de pior poderia agredir nossos
ouvidos depois que a banda Leva Nóis gravou Liga da Justiça, uma música
paupérrima, que junta super-heróis de quadrinhos a coreografias com rebolados e
insinuações sexuais entre o Super-Homem e a Mulher Maravilha. O refrão diz: "Foge,
foge, Mulher Maravilha. Foge, foge com o Superman". Nela a palavra
"foge" é repetida mais de 80 vezes em quatro minutos, mas o cantor
André Ramon, crente que somos mesmo um bando de imbecis, nega que haja duplo
sentido (fode).
Mas
eu estava errado, pois uma banda de nome tão pretensioso quanto inocente, a tal Oz
Polêmicos (sic) conseguiu uma façanha ainda maior, ou pior (não sei) que a tal
da Leva Nóis, gravando uma música chamada Pepino, fruto da pobreza humana que,
abraçada pela mídia, logo caiu no gosto popular e se tornou o hit do momento, cuja
letra diz: Mãezinha eu estou com um pepino/ Meu pepino é muito grande/
Você tem que resolver esse meu pepino. E o refrão, repetido ad infinitum, é o seguinte: Cai, cai,
cai, cai, cai no pepino...
É
como disse o Gerônimo certa vez: não
demora muito e as meninas vão estar com o clitóris na testa e a boca na pica
dos caras em plena avenida e todo mundo vai achar normal. Indo um pouco
além, acho até possível que a TV (incluindo aquela do Bispo) transmita o fato
ao vivo como se fosse um beijo em plena avenida. Ê, midiazinha infeliz!
A
caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao
balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.
A
perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais
um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu
pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano,
fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial,
ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina,
quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples
espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a
cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança:
"assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem
assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que
merecem uma crônica.
Ao
fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas
de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na
contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma
negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre,
que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr
os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em
torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo,
porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo
a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do
bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão
um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel,
vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve,
concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher
suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua
presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás
do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo
simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A
negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho
que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três,
pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na
bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de
uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um
animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São
três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do
bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as
velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e
sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito
compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos:
"parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as
velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as
duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com
ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe
cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se
convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a
observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila,
ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num
sorriso.
Assim
eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
Nascido em Marilia (SP), em 1971, está radicado na Bahia desde 1993. É Escritor. Fundou, com amigos, o tablóide literário SOPA, em Salvador, do qual foi editor. Cursa Letras na UESC/BA. Tem artigos publicados em diversas revistas e sites especializados em literatura. É editor da Mondrongo Livros – a editora do Teatro Popular de Ilhéus. Seus livros são: “Diálogos: Panorama da Nova Poesia Grapiúna”, “Silêncios”, “Outros Silêncios” e "Procura e Outros Poemas". Venceu o Prêmio Bahia de Todas as Letras, edição 2009, em duas categorias: Poesia e Literatura de Cordel. Venceu o Prêmio Nacional Patativa do Assaré de Literatura de Cordel (Minc). Venceu o prêmio Yoshio Takemoto de literatura (SP), edição 2011, nas categorias Conto e Poesia. Teve o conto “Os Bagos do Professor” selecionado para publicação pelo Concurso Internacional Cataratas, de Foz do Iguaçu (PR), e o conto “O Amigo de Caymmi” premiado no Concurso Maximiniano Campos de Contos (PE), edição 2011.