segunda-feira, 30 de maio de 2011

Quinta Canção Para Flora


Não hei de ser, jamais, um cais,
tampouco um porto eu hei de ser;
mas se quiseres, filha minha,
serei a casa onde hás de ter

uma janela sempre aberta,
um recanto para, na certa,

retornares, e no retorno,
o mesmo chão a te esperar,
o mesmo ombro como adorno

para pousares teu cansaço
e dizer tudo em um abraço. 

domingo, 29 de maio de 2011

Ariano Suassuna fará palestra na UFBA


O escritor Ariano Suassuna fará palestra no dia 8 de junho, no Salão Nobre da reitoria da Universidade Federal da Bahia, às 19h30, dentro da programação do ‘Diálogos Universitários’. Defensor ardoroso da preservação de manifestações culturais nacionais, motivo pelo qual vive em constante conflito teórico com o que se convencionou chamar ‘globalização’, o escritor vai responder a perguntas e, de fato, dialogar com os presentes sobre esse e outros temas.
O evento é gratuito, mas as vagas são limitadas.
Para se inscrever, deve-se acessar o site do Diálogos Universitários.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

A Poesia de Mia Couto


       O Maçambicano Mia Couto tornou-se nos últimos anos um dos ficcionistas mais conhecidos da literatura de língua portuguesa. O que pouca gente sabe – sobretudo no Brasil – é que sua primeira publicação, em 1986, foi “Raíz de Orvalho”, um livro de poesia. De lá para cá publicou outros 21 livros, todos em prosa e em vários gêneros, entre eles romance, conto, crônica, ensaio. Em 2007 voltou à poesia com “Idades, Cidades, Divindades”.
Nada disso eu saberia se o meu amigo Pedro Montalvão, de volta de Portugal, não me trouxesse um ótimo presente, o livro “Tradutor de Chuvas”, o mais recente desse fabuloso Mia Couto, a quem estive lendo nas últimas duas manhãs, peito nu e pé no chão, em uma praia tranquila aqui de Ilhéus.        
Percebe-se que o livro tem muito de autobiográfico e uma linguagem cotidiana, no mesmo nível da fala comum, o que não limita seu discurso que se encontra eivado de metáforas.
Pretendo voltar a postar algumas das minhas impressões sobre a poesia de Mia Couto, mas por enquanto deixo para os leitores aquilo que em “Tradutor de Chuvas” até o momento mais me encantou.

SEIOS E ANSEIOS

As vezes que morri
boca derramada entre os teus seios,
todas essas vezes
não me deram luto
porque, de mim, eu em ti nascia.

Todos esses abismos,
meu amor,
não me deram regresso.

Depois de ti,
não há caminhos.

Porque eu nasci
antes de haver vida,
            depois de tu chegares.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Zé Rodrix do tamanho da Paz


Dia 21, sábado, fez dois anos que Zé Rodrix faleceu. Lembro-me claramente que a notícia – indesejada – pegou muita gente de surpresa, pois foi a morte precoce de um grande intéprete, compositor, publicitário e romancista tão querido, um homem de grande sensibilidade e com o qual tive a oportunidade de mater um relacionamento fraterno. Talvez essa entrevista, datada de 20 de novembro de 2008, tenha sido a última que Zé Rodrix concedeu por escrito.

Gustavo Felicíssimo – Zé, em que momento você acredita que suas atividades como compositor, publicitário e romancista se amalgamam?
Zé Rodrix O tempo todo. Não vejo nenhuma diferença essencial entre nenhum processo de criação, porque a criação é um ambiente contínuo no qual eu me movo de modos diferentes, adequando minhas ferramentas criativas para o objetivo desejado. A meu ver, nenhuma atividade criativa pode ser considerada mais elevada ou menos importante que a outra, por mais que exista preconceito de quem as observa, na maior parte das vezes sem saber do que se trata. Estar em pleno exercício criativo é a minha regularidade diária, sem a qual eu não seria eu mesmo: criar como forma de sobrevivência do corpo, da mente e do espírito, evoluindo, crescendo e me modificando a cada instante, tornando-me finalmente o objeto que surge da minha própria criação, através daquilo que eu realizo. Meus romances, minhas canções e meus jingles são facetas diversas de minha própria capacidade criativa, assim como meus desenhos, pinturas, peças teatrais e até poemas, cada um ocupando o seu espaço específico no mundo real, mas todos partindo de uma mesma fonte original, eu mesmo.

GF – Há quem diga que a música popular foi quem tomou o espaço já diminuto da poesia. O que você acha dessa afirmação?
ZRO equívoco, a meu ver, é dos poetas, que de maneira geral têm tido inveja do aparente sucesso popular dos músicos, e se dispuseram a enfiar a sua poesia de maneira artificial na seara musical, prejudicando tanto a poesia quanto a música. Não creio que exista nenhuma semelhança entre poesia e letras de música, por exemplo: são objetos artísticos perfeitamente diversos e diferentes, apesar de partilharem algumas semelhanças no uso da língua e dos truques criativos. A partir de determinado momento, quando letristas passaram a ser chamados de poetas, (equivocadamente, a meu ver) os poetas se sentiram à vontade para se transformarem em roqueiros, usando a música popular como veículo para sua poesia que, de maneira geral, funciona muito mal quando cantada, mas seria excelente se permanecesse nos limites reais da poesia escrita.  Agora, vai ser preciso muita coragem da parte dos poetas para romper este vício da popularidade e retomarem seu processo poético original, de forma a recuperar o verdadeiro valor da poesia, pois, como disse Fernando Pessoa, “a popularidade é um plebeísmo”. Insuportável para a tão necessária verdade e permanência poética.

GF – Você acredita em um processo de alienação das massas provocado por uma possível e anunciada “ditadura midiática”? Essas questões chegam a te incomodar?
ZRDe forma geral, esta “ditadura midiática” é papo muito velho, herdado do Manifesto do CPC da UNE em 1962, que já era cópia quase fiel do Manifesto por Um Realismo Socialista, de Jdanov, escrito na URSS em 1947. Nela se estabelecem como inimigos todos os processos de abrangência comercial da arte tanto burguesa quanto popular, descartando tanto a “arte burguesa’ quando a “arte popular” com sendo veículos de alienação, e pregando a necessidade de uma “arte popular revolucionária”, que nunca existiu realmente, a não ser como as experiências artificialíssimas da MPB,  seguindo os passos de uma “brasilidade” estabelecida pela outra ditadura, a de Getúlio Vargas.
            A tentativa de estabelecer um “padrão popular” de música feita no Brasil, por exemplo,  já tinha sido intentada por Lourival Fontes, diretor do DIP durante o Estado Novo, e este padrão de “brasilidade”  é uma barreira que permanece ainda vigente como parâmetro dos artistas nacionais, porque foi assumido como sendo “real” pelo manifesto da UNE, que preferiu a ditadura de Vargas à Ditadura Militar, pretendendo que a primeira fosse melhor que a segunda, no que se equivocaram profundamente.
             O sistema de comunicação midiática mundial já pretendeu ser dono das vontades de todos, menos de quem o critica, ainda que quem o critique também esteja sob a égide de uma mídia específica e tão daninha quanto a que verbera. Acusar a mídia por todas as mazelas do mundo, menos as próprias, indica apenas um desconhecimento profundo das possibilidades humanas de livre-arbítrio, escolha, e capacidade de decisão. Tudo está, a meu ver, nos limites da consciência e responsabilidade pessoais,  e para entender isto seria preciso estudar com atenção o momento em que Sartre, tendo durante algum tempo proposto como ideal a figura do “artista engajado”, a substituiu pela do “artista consciente”, já no fim de sua vida.
             A Arte não está sob o controle de nenhuma mídia, se verdadeiramente for Arte, e nem os usuários desta mídia se tornam escravos dela, principalmente agora que a revolução tecnológica permite a livre expressão das individualidades através da escolha pessoal. Há inúmeros artistas que, filiando-se a esta ou aquela escola, se consideram mais artistas que outros de outras escolas, ao mesmo tempo em que partilham de práticas e usos que condenam em seus desafetos, aplaudindo-os em si mesmos como “exemplo de pragmatismo ideológico”. Dois pesos, duas medidas, infelizmente valorizados e divulgados como sendo ideais pelos que chamo de Perpetuadores dos Dogmas e Defensores dos Mitos, estes que, sendo parte da mídia, se especializaram em expor seu gosto pessoal ou filiação ideológica como sendo a Única Verdade, tornando-se divulgadores de seu próprio e equivocado Evangelho, tentando convencer a quem os ouve de que a Arte de que gostam nos foi doada diretamente por Deus e que todas as outras são imitações diabólicas desta.
             Os seres humanos, atualmente, e a cada dia mais, têm infinitas formas de fazerem suas próprias escolhas, através das liberdades individuais, deixando-se envolver por aquilo que os agrada e rejeitando aquilo que os desagrada, por mais que as teorias vigentes ainda  insistam em nos impor o gosto por aquilo de que não gostamos, como necessidade de sobrevivência da “kultura”. Neste sentido, as classes populares são muito mais livres, porque em seu território possível, selecionam e elegem como sendo SUAS as formas de Arte que lhes tocam mais de perto, em vez de seguirem, obedientemente, os parâmetros que algum evangelista lhes imponha como sendo os únicos possíveis, da maneira como a classe média tem feito.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Quando a cidade se afogar


Casa Família Amigos.
Nada disso se pode comparar
à loucura da cidade,
onde há tempo apenas para a solidão,
para a fuligem e para trapaças.
Necessito respirar e mais nada.
Afinal, não me restam dúvidas,
perguntas a fazer
ou maiores decisões a tomar.
Mas quando a cidade se afogar
por falta de uma simples reflexão,
então se pensará em esquecer ou resistir,
em se encontrar ou se perder de vez.
Quando a cidade se afogar
no seu ruído infernal
e na sua ambição de guerrear,
estarei em casa
com minha família e meus amigos.
Sem me preocupar em ganhar ou perder,
estarei ouvindo o rumor das águas,
cantando e sorrindo, quem sabe...
Cantando e sorrindo sem razão?
Estarei cantando e sorrindo
para as coisas essenciais, apenas.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Mestre Antônio Cândido irá mesmo à FLIP e falará sobre Oswald de Andrade

Manuel da Costa Pinto, curador da FLIP, apresentou na manhã de hoje, dia 19, a programação completa da 9ª edição da festa. O crítico Antonio Candido, para a felicidade geral dos amantes da literatura, fará mesmo a abertura, oportunidade em que falará sobre Oswald de Andrade, o homenageado na festa.

Confira a programação completa da Flip, Flipinha e Flipzona CLICANDO AQUI.

Dignidade - Professora cala deputados

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Antonio Candido na Flip?


A notícia da Folha de S. Paulo (18/05) dá conta de que o principal crítico literário vivo do país, Antonio Candido, 92, pode ser uma grata surpresa da próxima Flip. Convidado a falar sobre Oswald de Andrade, ele estuda a possibilidade e adianta que "foi um convite muito gentil, mas ainda não me decidi, por causa da minha saúde e da minha idade. Fiquei de pensar, estou pensando", disse. De minha parte, espero que ele aceite, pois estarei lá.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Do lixo à literatura: editora argentina transforma papelão em livros e ajuda catadores


Potes de tinta, pincéis, cola, papel e estiletes são todo o material necessário para transformar papelão em capas de obras de autores como Alan Pauls, Fabián Casas, Glauco Mattoso e Haroldo de Campos. Esta é a proposta de Eloísa Cartonera, uma editora independente e auto-gerida, criada em 2003, ano em que a Argentina sofria as repercussões do colapso político-econômico do país em 2001.

Clique AQUI e leia o texto na íntegra.

Um Texto Imperdível Sobre um Livro Necessário


Artigo de Miguel Sanches Neto sobre Esta poesia e mais outra, do crítico Felipe Fortuna.

O crescimento da oferta de livros fez com que se criassem micro campos de poder literário altamente excludentes, em que aparecem apenas os afiliados de uma linguagem, de uma ideologia ou de um credo artístico. Eis o principal problema sofrido hoje pelo autor avesso à vida gregária. Leia mais clicando AQUI.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Torre de Babel é feita em Buenos Aires com 30 mil livros de todas as partes do mundo


A Torre de Babel, feita pela artista Marta Minujín com 30 mil livros de todas as partes do mundo foi inaugurada oficialmente e pode ser visitada até o dia 27. A iniciativa faz parte das atividades em celebração ao título de Capital Mundial do Livro, conferido pela Unesco à Buenos Aires em 2011. A torre é uma obra de arte urbana e efêmera de 38 metros de altura e oito pisos e foi feita com livros de 54 países. No último dia, os visitantes poderão levar os livros. Os que sobrarem serão usados na biblioteca Babel, que será construída.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Uma crônica antecipada


Texto de Silvério Duque

A poesia, ao contrário do que pensam muitos, representa muito para o nosso Brasil. A poesia, em nosso País, sempre foi algo muito forte, ligada demasiadamente à construção de nossa nação, à nossa idéia de brasileiros, à identidade brasileira. O problema é que, de uns tempos para cá, alguns critérios muito básicos vêm mudando radical e erroneamente. Exceto por uma duas dúzias de esmerados perdidos por nosso vasto território, a cultura, que, no Brasil, um dia, se chamou de erudita, é quase uma alucinação. Daí, um dos grandes problemas de nossa atual sociedade: desaprender o sentido, tanto teórico quanto prático, da palavra “critério”, ou mesmo “juízo” e “discernimento”. E a poesia, principalmente a contemporânea, acabou sofrendo muito com isso, também. Assim, me pergunto ou se me perguntam se a nossa poesia vai bem, é claro que vai, sempre foi maravilhosa.

Clique AQUI e conheça o texto integral no blog do Silvério Duque.

terça-feira, 10 de maio de 2011

A faceta de astrólogo do poeta Fernando Pessoa


Intitulado “Fernando Pessoa - Cartas Astrológicas”, o livro reúne “algumas dezenas das mais reveladoras cartas astrológicas erigidas por Pessoa”, escreve o astrólogo Paulo Cardoso. Jerónimo Pizarro, catedrático nas universidades de Lisboa e de Los Andes (Colômbia) que prefacia a obra, afirmou à Lusa que esta obra “abre novas pistas de investigação, e demonstra como a teoria dos heterónimos é influenciada pela astrologia”. LEIA MAIS.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Entrevista com Ariano Suassuna


Imperdível entrevista no jornal O Estado de São Paulo com o grande mestre, defensor e divulgador da cultura brasileira de raiz. Eis o link, AQUI.

Crônica dos meus 40 anos


Que estou ficando velho,
foi o que me disseram
alguns amigos
agora que cheguei
aos quarenta anos.
Isso foi ontem
e não me desanima.
Hoje fitei o sorriso
de minha filha
nos braços de minha mãe
e percebi
que a vida não é uma ilha.

domingo, 8 de maio de 2011

Quarta canção para Flora


Eu, que a bem pouco tempo atrás sequer cogitava a hipótese de ser pai, tenho a oportunidade de comemorar hoje o primeiro aninho de minha filha, Flora, justamente no dia das mães, a família unida, e em paz. Pra completar, nesta segunda-feira (09) faço 40 anos. Nada muda, é verdade, mas a felicidade é imensa.

Quarta canção para Flora

Sentado à margem deste rio,
onde me sinto um peregrino,
revejo as nuvens no infinito
e por instantes sou menino;

eu solto pipa, jogo bola,
rodo pião à espanhola;

e como sou aquele infante
sentado à margem deste rio,
em meu olhar um diamante:

o sorriso da minha filha
e uma lágrima maltrapilha.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Teatro nacional perde um grande expoente


Com informação do PublishNews

No último dia 02 de maio o teatro brasileiro perdeu um de seus principais protagonistas. Falo de Zé Renato, fundador do Teatro de Arena e diretor de inúmeros clássicos, entre os quais se destaca “Eles não usam black-tie”. Para conhecer sua trajetória, que se mistura à própria história do teatro brasileiro, basta fazer o download gratuito de sua biografia escrita por Hersch Basbaum para a Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. O título, Energia eterna, traduz bem o biografado. Poucas horas antes de sua morte, Zé Renato subiu ao palco do Teatro Imprensa para encenar “Doze homens e uma sentença” e seguiria viagem para o Rio de Janeiro naquela mesma noite.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

A Humanidade Dorme Profundamente


Chega ao fim mais uma noite.
Nenhum ruído rompe o silêncio.
Nenhuma canção de amor.
Nenhum relicário com velhas lembranças.
Nenhum antigo companheiro.
Nenhuma promessa cumprida
ou qualquer prostituta em salto alto.
Apenas alguns versos melancólicos
de um cego argentino sobre minha cama.
Mas como enxergava aquele cego!
Em um sonho torpe ele me disse:
- A humanidade dorme profundamente!
A humanidade dorme profundamente
enquanto os ratos se lambuzam.
A humanidade dorme profundamente
enquanto as sombras se entrecruzam.
A humanidade dorme profundamente
ante a morte imensa e imensurável.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A Imbecilidade sem Limites


Duplo sentido é uma figura de linguagem na qual uma frase ou expressão pode ser entendida de duas maneiras distintas, com a intenção de provocar humor ou ironia. Tal recurso há muito tempo vem sendo utilizado na música brasileira, em alguns momentos com grande maestria, como fez Chico Buarque durante a ditadura, desafiando a (des) inteligência da censura. Um bom exemplo é Apesar de você, uma canção de protesto com mensagens subliminares contra o presidente Médici.
É bem verdade que Chico enviou a letra ao órgão crendo que ela seria vetada, mas como foi liberada, lançou-se um compacto com Apesar de você de um lado e Desalento de outro. Em uma semana cem mil cópias foram vendidas e a música já era adotada como hino de resistência aos militares quando um jornal publicou uma nota dizendo que o “você”, na verdade, era o general Médici. A música foi proibida de ser executada e todos os compactos recolhidos e queimados.
Nos dias de hoje, talvez pela falta de um inimigo público declarado, apesar de tantos estarem por aí vestidos em pele de carneirinhos, esse tipo de letra está descambando (se já não descambou) para a pornografia e total exploração da alienação do povo.
No momento, infelizmente, a música baiana está impregnada tanto por imbecis quanto por uma mídia indulgente, comparsas no processo de insanidade e imbecilização do povo, irmanados que estão por laços indissociáveis.
Escrevo sobre esse tema depois de ter assistido a um VÍDEO onde a cantora Margareth Menezes critica veementemente esse tipo de comportamento, tanto dos músicos quanto dos ouvintes, mas também porque achei que nada de pior poderia agredir nossos ouvidos depois que a banda Leva Nóis gravou Liga da Justiça, uma música paupérrima, que junta super-heróis de quadrinhos a coreografias com rebolados e insinuações sexuais entre o Super-Homem e a Mulher Maravilha. O refrão diz: "Foge, foge, Mulher Maravilha. Foge, foge com o Superman". Nela a palavra "foge" é repetida mais de 80 vezes em quatro minutos, mas o cantor André Ramon, crente que somos mesmo um bando de imbecis, nega que haja duplo sentido (fode).
Mas eu estava errado, pois uma banda de nome tão pretensioso quanto inocente, a tal Oz Polêmicos (sic) conseguiu uma façanha ainda maior, ou pior (não sei) que a tal da Leva Nóis, gravando uma música chamada Pepino, fruto da pobreza humana que, abraçada pela mídia, logo caiu no gosto popular e se tornou o hit do momento, cuja letra diz: Mãezinha eu estou com um pepino/ Meu pepino é muito grande/ Você tem que resolver esse meu pepino. E o refrão, repetido ad infinitum, é o seguinte: Cai, cai, cai, cai, cai no pepino...
É como disse o Gerônimo certa vez: não demora muito e as meninas vão estar com o clitóris na testa e a boca na pica dos caras em plena avenida e todo mundo vai achar normal. Indo um pouco além, acho até possível que a TV (incluindo aquela do Bispo) transmita o fato ao vivo como se fosse um beijo em plena avenida. Ê, midiazinha infeliz!

A Última Crônica


Fernando Sabino

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.
A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.