quinta-feira, 31 de março de 2011

Vinícius, poeta do encontro

Por Otto Lara Resende


Homem de bem com a vida, a favor da vida. A quem a vida nada se nega. Criador de um lirismo em prosa e verso, falado e cantado, e sempre de exaltação a vida.
A canção em Vinícius nasce de um encontro, não vem de um conflito. Encontro consigo mesmo, com o outro, com sua cidade. Com o menino livre e feliz que foi, com o tempo da infância, fonte inesgotável quando tudo era indizivelmente bom. Menino de beira de mar, os carinhos de vento no rosto e as frescas mãos de maré nos seus dedos de água.
Encontro com o próximo, com aquele que se dá à vida. O que não se defende, o que não se fecha, o que não se recusa participar do espetáculo fascinante da grande e da pequena ventura de viver.
Encontro com os amigos, parceiros da vida em comum, amigos da arte em comum. Encontro com a mulher amada, amiga infinitamente amiga. Encontro com a mulher do povo entre moringas e cenouras emolduradas de vassouras. Com o operário em construção, dono de uma nova dimensão, a dimensão da poesia.
Encontro de sensibilidade pessoal com o sentimento popular da inspiração e da técnica pessoal com o ritmo e inspiração geral. Encontro da mulher com o homem, do amor. Das palavras com a música, da poesia com a canção. Poesia de aliança com a vida e canção de aliança com a multidão. Voz pessoal, mas compreendendo muitas vozes. Encontro com uma voz com todas as vozes.
Poeta do encontro, cantor de vida. Vinicius tomou partido do sentimento contra o ressentimento. Por isso, ele não semeia pedras como aquele que não ama. Semeia canções, poesia.
Vinicius canta o povo.
O povo canta Vinicius.
A bênção, Vinicius de Moraes.

A HORA ÍNTIMA
Vinícius de Morais

Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: – Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: – Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: – Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: – Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: – Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?

Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?

terça-feira, 29 de março de 2011

Livro de Jorge Amado completa 80 anos


O País do Carnaval, primeiro romance de Jorge Amado, completa 80 anos de publicação em 2011. O livro foi escrito quando Jorge tinha apenas 18 anos e sua primeira edição foi publicada em 1931, no Brasil. Mais tarde, foi traduzido para três línguas diferentes: espanhol, francês e italiano, além de ter sido editado em Portugal. O livro foi considerado “revolucionário” pelo Estado Novo e, junto a outros títulos de Jorge, foi queimado em praça pública, em Salvador, em 1937. O País do Carnaval conta a história de Paulo Rigger, um brasileiro que não se identifica com o país. É um relato sobre a formação e a situação dos intelectuais brasileiros nos momentos que antecedem a Revolução de 1930. 
        O que pouca gente sabe é que antes disso, em 1929, Jorge escreveu uma novela com Dias da Costa e Edison Carneiro e a publicou em “O Jornal”, onde trabalhava. Trata-se de Lenita, de fato sua primeira obra publicada, mas que ele renegou. No ano seguinte, 1930, portanto, um ano antes de O País do Carnaval, a obra é editada em livro por A. Coelho Branco Filho, no Rio de Janeiro. 


Mais sobre o autor no site da Fundação Casa de Jorge Amado CLICANDO AQUI.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Belíssima entrevista com Silvério Duque


Eu comecei muito cedo a ler poesia; escrever, no entanto, foi algo que veio depois, bem depois e eu, sinceramente, não conseguiria dizer, com certeza, quando ou como foi verdadeiramente. Sei que apareceu, sei que Fernando Pessoa, Drummmond, Camões, Shakespeare, Dante, e, logo depois, Eurico Alves Boaventura, Manuel Bandeira, João Cabral, Rilke, Tolentino, começaram a fazer parte de minha vida... mas, hoje, prefiro acreditar, ou me limitar a responder, na seguinte idéia: Poeta nascitur, orator fit, como diria Sêneca. LEIA MAIS...

O luto da arte


A discussão sobre a morte da arte teve um lugar essencial nas Lições de Estética, de Hegel, no século 19. Não se pode perder de vista que a morte da arte à qual Hegel se referia era a da arte bela e não da arte de modo geral. Se Hegel tem razão, em havendo uma morte da arte que não deve ser generalizada, trata-se de entender que tipo de arte, para além da arte bela, sobreviveu. Em um século de genocídios, ditaduras e violências de toda sorte, a arte é a memória da sua própria morte. LEIA MAIS...    

domingo, 27 de março de 2011

Rogério Ceni, Cem Vezes


Maior ídolo em atividade no futebol brasileiro e verdadeiro exemplo a ser seguido pelos jogadores mais jovens, Rogério Ceni, goleiro do São Paulo, como todo mundo sabe, fez seu centésimo gol (aliás, um golaço) cobrando magistralmente uma falta contra o nosso maior rival, o Corinthians, o que tornou a comemoração ainda mais saborosa. Por isso (e por toda a sua contribuição) não me canso de aplaudi-lo e de publicar aqui esse poema.

SÃO PAULO F.C.

Para Rogério Ceni, ídolo

Sabe-se lá o que é torcer,
cantar, vibrar com esse time,
essa nação de tricolores
cuja memória é sublime,

que no presente honra o passado
e no gramado é respeitado,

é destemido e vencedor,
tão imponente quanto o sol
e tão valente até na dor?

Sabe-se lá o que é torcer,
ser são-paulino até morrer? 

sexta-feira, 25 de março de 2011

Adendo ao Poema Procura da Poesia


             Para Carlos Drummond de Andrade

Não estamos acima da poesia
para justificar nossa imperícia frente ao verso:
à sua frente, somos a fração do imponderável
entre existência e linguagem.
Tua biografia não é a tua obra,
o que dela dizem não é a melhor imagem.
Deixa o teu leitor à vontade,
oferta-lhe a poltrona mais confortável,
um gole de água fresca
e o convide ao mergulho nas tuas vivências.
Não perguntes sobre os teus poemas,
observa primeiro se possuem raízes,
se oferecem frutos saudáveis.
Cuida que a palavra,
esse instrumento que tens às mãos,
não seja mais importante que os sentidos,
mas a memória, dela tirarás teus versos.
Preserve-a na imutável companhia das coisas
que te são caras.
Na memória reside a chave que decifra
a inadvertida presença da poesia entre nós.
Sua morada é escura
e espera que acendas as lâmpadas,
após todas as coisas se revelarão.  

Sugestão:
Releia o poema Procura da Poesia. CLIQUE AQUI.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Meio pão e um livro


Federico García Lorca, em livre tradução de Frei Betto

Quando alguém vai ao teatro, a um concerto ou a uma festa, se lhe agrada, lamenta que as pessoas de quem gosta não estejam ali. “Como minha irmã, meu pai iriam apreciar”, pensa, e desfruta tomado por leve melancolia.
Esta é a melancolia que sinto, não pela minha família, e sim por todas as criaturas que, por falta de meios e por desgraça, não gozam do supremo bem da beleza, que é a vida com bondade, serenidade e paixão.
Por isso nunca tenho livro, pois presenteio todos os que compro, que são muitíssimos, e portanto estou aqui honrado e contente por inaugurar esta biblioteca do povo, a primeira na região de Granada.
Não só de pão vive o homem. Eu, se tivesse fome e estivesse abandonado na rua, não pediria um pão, pediria meio pão e um livro. Critico violentamente os que falam apenas de reivindicações econômicas, sem jamais ressaltar as culturais, que os povos pedem aos gritos.
Ótimo que todos os homens comam; melhor que todos tenham saber. Que gozem todos os frutos do espírito humano, porque o contrário é serem transformados em máquinas a serviço do Estado, convertidos em escravos de uma terrível organização social.
Lamento muito mais por um homem que deseja saber e não pode, do que por um faminto. Este aplaca a fome com um pedaço de pão ou algumas frutas. Mas um homem que tem ânsia de saber e não possui os meios, sofre uma profunda agonia, porque são livros, livros, muitos livros, de que necessita. E onde estão esses livros?
Livros! Livros! Palavra mágica que equivale a dizer: “amor, amor”, e que os povos deviam pedir como pedem pão ou anseiam por chuva após semearem.
Quando Dostoiévski, pai da revolução russa muito mais que Lenin, se encontrava prisioneiro na Sibéria, isolado do mundo, retido entre quatro paredes e cercado de desoladas extensões de neve infinita, em carta à sua família pedia que o socorressem: “Enviem-me livros, livros, muitos livros, para que minha alma não morra!”
Tinha frio e não pedia fogo; sede e não pedia água; pedia livros, ou seja, horizontes, escadas para subir ao ápice do espírito e do coração. Porque a agonia física, biológica, natural de um corpo faminto, provocada pela fome, sede ou frio, dura pouco, muito pouco, mas a da alma insatisfeita dura toda a vida.
Disse o grande Menéndez Pidal, um dos sábios mais autênticos da Europa, que o lema da República deveria ser: “Cultura”. Porque só através dela é possível solucionar as dificuldades que hoje enfrenta o povo cheio de fé, mas carente de luz.

Em: Caros Amigos, Edição de Março de 2011.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Polêmica na Premiação de Chico Buarque provoca mudança nas regras para o Prêmio Jabuti


          A edição do ano passado do Prêmio Jabuti foi marcada por muita polêmica, pois não se sabe a partir de quais critérios Chico Buarque se tornara o vencedor do Livro do Ano de Ficção, com a obra Leite Derramado, mesmo tendo ficado apenas em segundo lugar na categoria Romance (o primeiro foi Se eu Fechar os Olhos Agora, de Edney Silvestre).
            A Record, editora de Edney, protestou de maneira enfática, e publicamente, ameaçando não inscrever seus autores nas próximas premiações, forçando para que as mudanças acontecessem, até que ontem a Câmara Brasileira do Livro as anunciou. A principal delas é que agora apenas o primeiro colocado em cada categoria levará o prêmio para casa. Sendo assim, apenas o vencedor das categorias concorre ao famigerado prêmio de Livro do Ano de Ficção.

Saiba mais CLICANDO AQUI

BAIANICES, BAIANADAS & BAIANIDADES

Jotacê Freitas em ação,
se não me engano, na
Feira de São Joaquim,
em Salvador.
Caríssimos, o mestre Jotacê Freitas, um dos maiores cordelistas da Bahia, premiado em nível estadual e nacional, através da Editora AG Book, está lançando parte significativa da sua extensa produção em e-book. Trata-se dos três volumes da Coleção BAIANICES, BAIANADAS & BAIANIDADES.
A obra é altamente recomendada para quem é iniciado em Cordel, mas também para quem anseia travar contato com essa forma literária apaixonante, de onde emergem personagens sensacionais, caricatura e crítica social, bem como retrata as mais profundas tradições nordestinas, sempre com um olhar bem diferente daquele que é impresso em revistas e jornais.
Mas isso não é tudo! Devo dizer que a obra de Jotacê é altamente contagiante, tanto pelo domínio estético que ele possui, quanto pelo seu humor escrachado e finíssima ironia.

É ver e adquirir CLICANDO AQUI.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Entrevista com o poeta árabe Adonis


Adonis, aos 80 anos, apontam os especialistas, talvez seja hoje a mais importante figura poética do mundo árabe. Seu nome próprio é Ali Ahmad Said Esber, e seu pseudônimo refere-se ao deus de origem fenícia, símbolo da renovação cíclica. Sua poesia defendeu, com muito êxito, a renovação da poesia árabe.
É autor de vasta obra poética e ensaística, traduzida para diversos idiomas, embora no Brasil esteja publicado apenas em revistas de literatura e arte. Também é tradutor, tendo vertido para o árabe obras de autores importantes da literatura ocidental, como a de Ovídio, Saint-John Perse e Yves Bonnefoy. Atualmente mora em Paris e nos últimos anos seu nome tem sido fortemente esperado para o Nobel de Literatura.
            A entrevista foi feita pelo jornalista Guilherme Freitas e publicada n’O Globo de 19 de março. Nela, Adonis explica sua leitura da tradição poética árabe, certa linhagem de pensadores iconoclastas e antirreligiosos e aponta a promiscuidade entre política e religião nas sociedades árabes contemporâneas. Crítico radical do monoteísmo, ele fala também sobre os impasses no diálogo entre Ocidente e Oriente. LEIA AQUI. 

sábado, 19 de março de 2011

A Prisão do Leiteiro


Ainda de madrugada, um homem ordenha as poucas vaquinhas que possui e vai às ruas da cidade interiorana, montado em sua carroça, vender leite in natura para uma clientela fiel que prefere tomá-lo assim, purinho e morno, oriundo de grandes tetas, ao invés de produtos embalados, processados por máquinas, cuja origem o cidadão matreiro desconhece e desconfia. Em muitos lugares a coisa funciona assim até hoje.
Na minha infância, quando o leiteiro anunciava a sua chegada em nossa rua, sempre aos sábados bem cedinho, minha mãe que já o esperava na calçada mesmo em dias de muito frio, nem precisava lhe pedir que completasse o vasilhame de cerca de dois litros, mais ou menos. O homem, com sua jarra enorme, atendendo-a prontamente, fazia questão de despejar o leite de uma altura generosa até ele ficar espumante, o que nos parecia uma prova inconteste do seu frescor.
Após, quem aparecia na rua atrás da freguesia certa era o vendedor de pães caseiros com seu imenso balaio. Macios e cheirosos, além de recém saídos do forno, não demoravam muito a serem comercializados e imediatamente devorados com manteiga fresquinha, também caseira, e um bom café comprado na mercearia que o torrava e moía na hora.
Esse assunto, admito, me deixou saudoso pra dedel e com a mesma água na boca que você, meu caro leitor, também deve estar. Entretanto, não são essas lembranças que me motivam a escrever nesta tarde renitente, mas um fato curioso ocorrido na cidade baiana de Riachão do Jacuípe, terra do meu querido amigo, poeta e contista, Miguel Carneiro. Lá um lavrador de 58 anos, leiteiro por necessidade, foi preso na última sexta-feira, 11 de março, por vender leite de porta em porta, hoje uma prática proibida pela Vigilância Sanitária.
A prisão, como não poderia deixar de ser, revoltou os moradores do município, que fizeram uma série de manifestações. O protesto da população foi ouvido e o leiteiro solto após cinco dias trancafiado na cadeia, fato que não minimiza a injustiça que a justiça acabou por promover, pois em situações como essa o estado precisa proteger e instruir, não prender o cidadão.
Ao fim, o infeliz episódio de Riachão do Jacuípe me levou a revisitar imediatamente o poema Morte do Leiteiro, do nosso querido Carlos Drummond de Andrade. Nele, se me faço entender, dois versos lembram a ação da Vigilância Sanitária e da justiça. Diz o poeta: E há sempre um senhor que acorda,/ resmunga e torna a dormir.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Um blog para Maria Bethânia


A jornalista Mônica Bergamo, na Folha de S. Paulo de ontem, 16 de março, informa que Maria Bethânia conseguiu autorização do Ministério da Cultura para captar R$ 1,3 milhão para a criação de um blog. A ideia é que "O Mundo Precisa de Poesia", nome dado ao site, seja dedicado inteiramente aos versos e traga diariamente um vídeo (com direção de Andrucha Waddington) da cantora interpretando grandes obras.
Há três anos Bethânia se envolveu numa polêmica ao ter um pedido de captação, de R$ 1,8 milhão para uma turnê, rejeitado pela área técnica do ministério, o que deveria acontecer com esse projeto também, afinal, o valor arrecadado é abatido de impostos que as empresas “patrocinadoras” deveriam pagar e que, ao contrário do que se diz, não é para todos, pois deve ser voltado prioritariamente para o incentivo e fomento da arte, sobretudo, quando envolve artistas que não possuem apelo mercadológico ou que sua arte esteja à margem da indústria cultural, o que, a meu ver, não é o caso de Maria Bethânia.
Acho que a coisa vai feder!

O mito de Don Juan


Existem livros que nos embevecem, ora pelo rol de conhecimentos que nos proporcionam, ora pela mestria com que o autor conduz o texto, embora nem sempre se consiga unir estilo e conhecimento sem alguma perda. No caso de Do Penhor à Pena: estudos do mito de Don Juan, desdobramentos e equivalências, de Jorge de Souza Araújo, Editus, 2005, as duas situações ocorrem simultaneamente. Nessa que deve ser a maior obra de análise do tema e obras donjuanescas relacionadas, Jorge dá um show em relação à estilística e profundidade na análise a partir, naturalmente, do Don Juan Tenório, de Tirso de Molina, e sua peça trágica El burlador de Sevilla y el convidado de piedra, publicado originalmente por volta de 1630.
Sob o ponto de vista mítico donjuanesco, Jorge de Souza Araújo estuda o seu percurso no teatro, poesia, ficção e ensaio, perpassando por Molière e Guerra Junqueiro, tão díspares entre si, até seu equivalente Casanova. Para tanto, não poupa elogios a Byron ou Baudelaire e seu “Don Juan no Inferno”, nem ao Pushkin em “O Convidado de Pedra”, como também não se conteve frente ao “120 dias de Sodoma”, afirmando que nenhuma qualidade literária possui o livro de Sade.
Além das análises, Jorge também nos brinda, ao final do livro, com um anexo exclusivamente de poemas donjuanescos de autores de língua portuguesa, entre os quais destaco Sombra de Don Juan, do Álvares de Azevedo e o Don Juan de Manuel Bandeira.

Don Juan
(Manuel Bandeira)

Ser de eleição em cujo olhar a natureza
Acendeu a fagulha altiva que fascina,
Tu trazias aquela aspiração divina
De realizar na vida a perfeita beleza.

Creste achá-la no amor, na indizível surpresa
Da posse - o sonho mau que desvaira e ilumina.
Vencido, escarneceste a virtude mofina...
Tua moral não foi a da massa burguesa.

Morreste incontentado, e cada seduzida
Foi um ludíbrio à tua essência. Em tais amores
Não encontraste nunca o sentido da vida.

Tua alma era do céu e perdeu-se no inferno...
Para os poetas e para os graves pensadores
Da imortal ânsia humana és o símbolo eterno.


Don Juan no Inferno
(Charles Baudelaire)

Quando ao mundo da treva desceu Don Juan,
Assim que a Caronte o óbolo pagou,
Um mendigo sombrio, mirada malsã
E braço vingador, cada remo tomou.

Com as roupas abertas e os seios de fora,
Um bando de mulheres, na negra manhã,
Rebanho sensual que matadouro implora,
Mugia atrás do herói num lânguido cancã.

Leporelo, a zombar, o salário cobrava.
O velho Don Luís, totalmente tantã,
Apontava a um morto, que ali passava,
O filho que jogou na lama o seu clã.

Histérica de dor, a casta e magra Elvira,
Ao marido traidor que era o seu afã,
Suplicava um último olhar sem mentira,
Um sorriso com a velha pose de galã.

O gigante de pedra, visão imponente,
Assomava à proa tal Leviatã,
Mas o calmo herói, a tudo indiferente,
Olhava sem temor o reino de Satã.

Tradução: Jorge Pontual

quarta-feira, 16 de março de 2011

Fotografias de Laurent Lavender impressionam


Laurent Laveder é fotógrafo profissional (um dos melhores do mundo) e jornalista científico. Ele criou uma série fotográfica a qual intitulou Moon Games, composta por diversas imagens que mostram pessoas interagindo com a Lua. Trata-se de algo impactante e sinestésico, por isso convido a todos a uma visita às imagens CLICANDO AQUI.
Da série, a imagem que prefiro é essa aí abaixo.


Octávio Mora: Um Grande Poeta Injustiçado


Tenho todos os livros (hoje raridades) de Octávio Mora, poeta que, segundo Pedro Sette Câmara, é um dos grandes injustiçados da nossa língua. Concordo com o Pedro, sobretudo quando penso na capacidade do poeta de nos oferecer poemas carregados de significados vários, pois impregnados de uma multiplicidade de sentidos poucas vezes vista em nossa poesia. Mais à frente voltarei ao assunto. Por enquanto, fiquem com dois bons exemplos para o que digo. Boa leitura!

EM SAQUAREMA

(i.m. Walmir Ayala)

Cemitérios onde os rastos
não são os de humanos pés
mas os de humanas marés
de ressecas e ombros gastos

Os cemitérios tão junto
do mar que do céu defronte
ao deitar-se no horizonte
são do próprio sol defunto

Cemitérios do convívio
com os elementos soltos
os mortos no chão revoltos
mediterrâneos de alívio

Os cemitérios que banham
o mar sem mármores rente
de costas todas de frente
numa encosta de montanha

Cemitérios ou são arcos
de círculos que recordam
os horizontes e abordam
a terra a bordo de barcos

 Os cemitérios que olham
para o mar cujo azul frio
cujas ondas só um vazio
preenchem e não o molham

Cemitérios sob os astros
sobre as ondas oscilantes
cujas campas flutuantes
cujas cruzes foram mastros

Os cemitérios que o sul
contemplam em vez do norte
as águas secas da morte
separando o céu do azul

 Cemitérios hoje portos
para onde afinal desterram
morrendo os que em vida erram
errantes depois de mortos

Os cemitérios que o vento
atravessa entre destroços
já nus descarnados ossos
sem fôlego ou comprimento

Cemitérios com veleiros
em vez de túmulos Velas
de barcos não de capelas
cemitérios marinheiros.


SEMPRE EVA

Mordendo, ao modo de quem come,
a polpa escura das maçãs,
as noites, tardes e manhãs
umas nas outras, como a fome.

Partes as frutas com os dentes
e encontras, sob a casca, a cor
verdadeira  de seu sabor
íntimo. Açúcar som sementes.

         Pelas sementes, mais
ou seu sabor ácido, a planta
cresce-te dentro da garganta
até os pés.Dizes-te: escuto.

         Inseparável das raízes
faz-se o silêncio sem escolha
que reproduz, folha por folha,
árvore audível, o que dizes.

Macias, as palavras, dentro
das frases, ásperas, mastigas
e a tua própria voz obrigas,
maçã, ao silêncio de seu centro.

Calas? Para que não transbordes
do teu silêncio e se descubra
o quanto és doce, a polpa rubra,
sempre, do próprio lábio mordes.

Octávio Mora estreou em poesia com o livro Ausência viva (1956). Depois publicou Terra imóvel (1959). A esses se seguiram Corpo habitável (1967), Pulso horário (1968), Saldo prévio (1968), Exiliurbano (1975) e Oda amarga y otros poemas (1985). Diplomado em Medicina (1956), Sociologia (1967), Comunicação (1971), também atuou como roteirista. Exerceu durante alguns anos a profissão de médico e aposentou-se como professor titular de Literatura na UFRJ.

Obs: Os poemas acima foram  extraídos de 41 POETAS DO RIO, org. Moacyr Félix.  Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998.  514 p.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Bandido Negro


Ao contrário do que imaginamos, em Castro Alves: Um Poeta Sempre Jovem, Alberto da Costa e Silva afirma que não há na poesia do poeta da liberdade nenhum indício de que ele tenha, algum dia, se demorado em conversas com um escravo africano sobre sua história e condição. Os exemplos de maus tratos, humilhações e perversidades que figuram em seus versos seriam pertencentes a um repertório de histórias que alimentavam a pregação abolicionista. Repertório esse que Castro Alves aproveitou como ninguém.
Poemas como “Bandido Negro” eram considerados como incitação ao crime, pois louvavam os grupos de africanos e crioulos que, armas na mão, atacavam as fazendas. Imagino que um poema como esse devia enfurecer os escravocratas. Acompanhe.

Bandido Negro
(Castro Alves)

Trema a terra de susto aterrada...
Minha égua veloz, desgrenhada,
negra, escura nas lapas voou.
Trema o céu... ó ruína! ó desgraça!
Porque o negro bandido é quem passa,
porque o negro bandido bradou:

Cai orvalho de sangue do escravo,
cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
cresce, cresce, vingança feroz.

(...)

E o senhor que na festa descanta
pare o braço que a taça alevanta,
coroada de flores azuis.
E murmure, julgando-se em sonhos:
"Que demônios são estes medonhos,
que lá passam famintos e nus"?

(...)

Somos nós, meu senhor, mas não tremas,
nós quebramos as nossas algemas
para pedir-te as esposas e mães.
Este é o filho do ancião que mataste.
Este - irmão da mulher que manchaste...
Oh! não tremas, senhor, são teus cães.

(...)

São teus cães, que tem frios e tem fome,
que há dez séculos a sede consome...
Quero um vasto banquete feroz...
Venha o manto que os ombros nos cubra.
Para vós fez-se a púrpura rubra.
Fez-se o manto de sangue para nós.

(...)

Meus leões africanos, alerta!
Vela a noite... a campina é deserta.
Quando a lua esconder seu clarão
seja o bramo da vida arrancado
no banquete da morte lançado
junto ao corvo, seu lúgubre irmão.

(...)

Trema o vale, o rochedo escarpado,
trema o céu de trovoes carregado,
ao passar da rajada de heróis,
que nas éguas fatais desgrenhadas
vão brandindo essas brancas espadas,
que se amolam nas campas de avós.

Cai orvalho de sangue do escravo,
cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
cresce, cresce, vingança feroz.

Ao Poeta Castro Alves - No Dia Nacional da Poesia



Morto com apenas 24 anos, em 1871, Castro Alves já era muito famoso em Salvador, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, onde Machado de Assis e José de Alencar se apressaram em conhecê-lo mal ele pôs os pés na cidade. Sua fama se estendia além dos círculos letrados. Nos teatros, nas tavernas e nas repúblicas estudantis, audiências entusiasmadas se reuniam para ouvi-lo declamar seus versos exaltadamente românticos, que logo centenas de admiradores sabiam de cor.
            Ele se preparava com meticulosidade para essas ocasiões, maquiando-se e pintando os lábios. O que o movia, como disse, era o “borbulhar do gênio”. E, também, a causa abolicionista, que o poeta defendeu e popularizou, levando-a a entrar cada vez mais na consciência nacional, mesmo depois da morte dele, como uma aberração.
          Mais que o “poeta dos escravos”, como se tornou conhecido, Castro Alves foi poeta público – um artista que enfrentou esteticamente o problema central da sua época e o transformou em poesia.

Texto de Alberto da Costa e Silva. Em: Castro Alves: Um Poeta Sempre Jovem. Coleção Perfis Brasileiros, Companhia das Letras

Ao Poeta Castro Alves
(Gustavo Felicíssimo)

Por que vieste assim, tão frágil,
sua vida beijando a morte,
se bebeu do leite da escrava
e se podia melhor sorte;

por que partiste muito jovem
se teus versos é que nos movem,

se teu canto é que nos conduz
sobre o éter dos novos dias,
caminho ao encontro da luz,

e por que não, sopro de vida
em meio à plêiade perdida?

Castro Alves por Manuel Bandeira e Afrânio Peixoto: