quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Monólogo de Salomé

(a cabeça de João Batista na bandeja)
The apparition, Gustave Moreau
       I

Enfim, olhaste para mim,
para essas pálpebras douradas
onde a luxúria se instalou
com suas vestes perfumadas;

para esses olhos perturbados
que se queriam devassados;

para essa boca onde o tumulto
se fez mistério e sofrimento
quando esperava por seu vulto:

deixo-te, aqui, meu doce beijo,
sobre a bandeja, o meu desejo.

        II

Vês, este é o corpo cobiçado,
semi despido, onde devias
ter repousado mansamente
e simplesmente gozarias;

uma obra prima, uma pintura,
assim meu corpo se afigura;

feito de pó, de sangue e luz,
a espada louca não lhe pesa
ou fere a cona se o seduz:

ele é meu para enlouquecer,
ferir, matar e dar prazer.

(Gustavo Felicíssimo)

Nota: Salomé é uma das personagens bíblicas mais pérfidas. Poucas mereceram por parte de escritores, dramaturgos, artistas plásticos e compositores a mesma atenção dada à filha de Herodias e sobrinha do tetrarca da Galileia - Herodes Antipas.
Gustavo Moreau, por exemplo, entre esboços, desenhos e telas, deu vida a uma única Salomé em mais de uma centena de versões.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A revista Corsário está de volta

Comemora seu 5º aniversário preparando o primeiro número em papel, prometendo-o para dezembro.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Morte do Poeta

Talvez eu morra de tanto existir,
talvez um verso me socorra.

E quando passar, é certo,
não seja como um ser abjeto.

Quando eu morrer, à beira mar,
que seja ouvindo o bramido das ondas.

Assim, entre os versos de uma vida
alguma verdade quem sabe se afira.

Quem sabe um poema perdure
e perfure a pele do tempo.

Quem sabe na hora exata o poema
perfeito que não poderei anotar.

Talvez seja um haikai divino,
talvez um soneto fescenino.

O vento deixando no tempo
as palavras trazidas do mar.

Se buscando paz encontrei paisagens,
deixarei uma prece na última tarde.

E montado no dorso do ocaso
levarei, companheira, a saudade.

À filha que tive e muito tenho amado
ficarão os passarinhos nos telhados.

E à mulher que me foi destinada,
um concerto de orquídeas no jardim.

Ficarão as cinzas do que fui
junto aos coqueiros de Olivença.

E junto aos sonhos irrealizados,
aforismos à próxima existência.

Sem que pelas palavras seja revelada,
de mim apenas a natureza restará.

Lembrarão da minha voz grave
contra a sujeira do nosso tempo.

Lembrarão dos passos embriagados
atravessando noites enluaradas.

Se for durante a primavera
terei ouvido a Valsa das Flores.

Terei visto pela última vez
um beija-flor na minha varanda.

Mas se for ao verão, que pena;
não mais as meninas douradas de sol.

Alguns amigos ficarão
como sementes que plantei.

A face leve, embora vivida,
dirá sobre o tempo decorrido.

Em forma etérea olharei meu corpo
confortavelmente estendido na areia.

Direi para mim e para os céus:
como foi bom ter vivido em Ilhéus!

(Gustavo Felicíssimo)

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Quintas Culturais na UESC

Hoje, a partir das 18:30h, participo da abertura o Projeto Quintas Culturais, na UESC. Estarei por lá a convite do meu amigo André Rosa, Coordenador do Cedoc, recitando alguns poemas ao lado da Manzuá, banda que vem trabalhando com minha obra e abrindo espaço para que atue também como letrista.

No link, uma parceria nossa premiada no Festival Firmino Rocha: http://sopadepoesia.blogspot.com/2010/08/atacando-de-letrista.html

clique na imagem para vê-la em tamanho maior

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Máquina de Escrever

Mãe, se eu morrer de um repentino mal,
vende meus bens a bem dos meus credores:
a fantasia de festivas cores
que usei no derradeiro Carnaval.

Vende ese rádio que ganhei de prêmio
por um concurso num jornal do povo,
e aquele terno novo, ou quase novo,
com poucas manchas de café boêmio.

Vende também meus óculos antigos
que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes
para enxergar os corações amigos.

Vende , além das gravatas, do chapéu,
meus sapatos rangentes. Sem ruído
é mais provável que eu alcance o Céu
e logre penetrar despercebido.

Vende meu dente de ouro. O Paraíso
requer apenas a expressão do olhar.
Já não precisarei do meu sorriso
para um outro sorriso me enganar.

Vende meus olhos a um brechó qualquer
que os guarde numa loja poeirenta,
reluzindo na sombra pardacenta,
refletindo um semblante de mulher.

Vende tudo, ao findar a minha sorte,
libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte
sem realmente desejar que eu viva.

Pode vender meu próprio leito e roupa
para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa
esta caduca máquina em que escrevo.

Mas poupa a minha amiga de horas mortas,
de teclas bambas,tique-taque incerto.
De ano em ano, manda-a ao conserto
e unta de azeite as suas peças tortas.

Vende todas as grandes pequenezas
que eram meu humílimo tesouro,
mas não! ainda que ofereçam ouro,
não venda o meu filtro de tristezas!

Quanta vez esta máquina afugenta
meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta,
o meu doce instrumento musical.

Bate rangendo, numa espécie de asma,
mas cada vez que bate é um grão de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma.

Pois será para ela uma tortura
sentir nas bambas eclas solitárias
um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura.

Deixa-a morrer também quando eu morrer;
deixa-a calar numa quietude extrema,
à espera do meu último poema
que as palavras não dão para fazer.

Conserva-a, minha mãe, no velho lar,
conservando os meus íntimos instantes,
e, nas noites de lua, não te espantes
quando as teclas baterem devagar.

(Giuseppe Ghiaroni)

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Sobre os poemas de Dante a Beatriz

Ainda hoje, na cripta onde jaz
Aquela que ele não pode fazer sua
Por mais que a seguisse pela rua
Uma emoção forte em seu nome nos traz.

Pois ele cuidou de nos mantê-la na memória
Ao dedicar-lhe verso tão sublime
E não pode haver quem não se anime
A acreditar inteira em sua história.

Ah, que mau costume ele inaugurou então
Ao cobrir de louvor arrebatado
O que havia apenas visto e não provado!

Desde que versejou a uma simples visão
Tudo de aparência bela e casta, a qualquer ensejo
Cruzando uma praça, tornou-se objeto de desejo.

(Bertold Brecht)

Nota: Ilustração de Gustave Doré para a Divina Comédia: Dante e Beatriz veem Deus como um ponto supremo de luz cercado por anjos no "Último Céu".

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Confissão de um velho boêmio

Toda vida devia ser
uma festa sem fim, velório
festivo da morte do tempo,
fogueira de azuis, crematório

ou, mesmo, hospital de lembranças
dos que nunca foram crianças,

e pularam toda a pureza,
ao invés de pular a corda,
dançar nas horas da beleza;

dos que hoje morrem sem saber
que festa acabam de perder.

(Alberto da Cunha Melo)

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

I Prêmio Litteris de Haikai

Se você é haikaísta, prepare- se. Neste concurso, cada participante poderá concorrer com até 6 (seis) poemas. As obras, informam os organizadores, deverão ser enviadas em língua portuguesa e as inscrições estarão abertas até o dia 30 de setembro.

Confira o regulamento:
www.litteris.com.br/concurso_haicai.htm

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A BIBLIOTECA DIGITAL MUNDIAL

Reúne mapas, textos, fotos, gravações e filmes de todos os tempos e explica em sete idiomas, incluindo o português, as jóias e relíquias culturais de todas as bibliotecas do planeta. Tem, sobretudo, caráter patrimonial.Entre os documentos mais antigos há alguns códices pré-colombianos, graças à contribuição do México, e os primeiros mapas da América, desenhados por Diego Gutiérrez para o rei de Espanha em 1562.
Os tesouros incluem o Hyakumanto Darani, um documento em japonês publicado no ano 764 e considerado o primeiro texto impresso da história; um relato dos astecas que constitui a primeira menção do Menino Jesus no Novo Mundo; trabalhos de cientistas árabes desvelando o mistério da álgebra; ossos utilizados como oráculos e esteiras chinesas; a Bíblia de Gutenberg; antigas fotos latino-americanas da Biblioteca Nacional do Brasil e a célebre Bíblia do Diabo, do século XIII, da Biblioteca Nacional da Suécia.

A BDM permite ao internauta orientar a sua busca por épocas, zonas geográficas, tipo de documento e instituição. O sistema propõe as explicações em sete idiomas e com um simples clique, podem-se passar as páginas de um livro, aproximar ou afastar os textos e movê-los em todos os sentidos. A excelente definição das imagens permite uma leitura cômoda e minuciosa.

Duas regiões do mundo estão particularmente bem representadas: América Latina e Médio Oriente. Isso deve-se à ativa participação da Biblioteca Nacional do Brasil, à biblioteca de Alexandria no Egito e à Universidade Rei Abdulá da Arábia Saudita.

Os seus responsáveis afirmam que a BDM está, sobretudo, destinada a investigadores, professores e alunos. Mas a importância que reveste esse site vai muito além da incitação ao estudo das novas gerações que vivem num mundo áudio-visual.

Vale a visita: www.wdl.org

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Silêncios - Breve comentário do Mestre Carlos Verçosa sobre nosso novo livro

A sopa de poesia de Gustavo Felicíssimo é nutritiva e variada. Deve ser tomada entre silêncios e como convém às sopas quentes, pelas beiradas.
Juntando ingredientes e condimentos da milenar cozinha poética japonesa às letrinhas de sua sopa, Gustavo mistura e manda: Pitadas haikai, folhas de cheiro tanka, raiz forte senryu, haikai encadeado picadinho e haibun ao molho. É soprar, tomar, devagar.
Seja na cuia profunda seja no prato raso, predomina o sabor haikai.
O leitor de paladar mais apurado poderá sentir numa ou noutra colherada o tempero tanka ou haibun. Há quem goste. Há quem não. Não se discute.
Sopa de poesia é assim mesmo: tem seus aromas e mistérios; segredos e truques de cozinheiro.
Assim, na sopa preparada por Gustavo: a receita permanece. É soprar, tomar, divagar.

Carlos Verçosa
Salvador, 10.01.2009
Obs: esse comentário consta na contra-capa de Silêncios

domingo, 12 de setembro de 2010

Silêncios - meu primeiro livro de poesia

Embora escreva poemas há algum tempo, somente agora, às vésperas de completar 40 anos, resolvo publicar em livro a minha produção, um projeto que resultará na edição de três compêndios distintos, os quais definem meu fazer literário.
SILÊNCIOS, uma obra imersa em formas oriundas do Japão e gestada durante os últimos dez anos, terá a função de ser o abre alas dessa série. Essa obra, organizada originalmente para atender a um edital do MEC (portanto, sem distribuição comercial), traz como posfácio o ensaio Flores de Cerejeira, no qual ouso traçar os principais aspectos do haikai no Brasil.
Além da maturidade do conteúdo, apontada por Carlos Verçosa, o que também me leva a publicar SILÊNCIOS é a possibilidade de trazer um fato novo para a poesia baiana: a publicação em livro de diversas formas da poesia japonesa, fato raro também no país.
Com uma belíssima capa e projeto gráfico muito feliz, SILÊNCIOS está previsto para ser lançado no início de outubro em Salvador; após em Ilhéus e em seguida em São Paulo e Marília (minha cidade natal). A tiragem será de apenas 500 exemplares. Quem tiver interesse, ao custo de 20,00 (incluindo a postagem), pode me escrever enviando o endereço postal para: gfpoeta@hotmail.com
No momento adequado o leitor aqui do blog receberá o número da conta corrente onde deverá fazer o depósito bancário.

Alguns haikais do livro

folhas ao vento
são como libélulas –
lume pro haikai

***

gatos no telhado –
a noite será de brigas
e muita desordem

***

segue seu instinto –
com leveza uma gaivota
vai vencendo o vento



SILÊNCIOS
Editora: Via Litterarum
Formato: 15 x 15 cm
Páginas: 92
ISBN: 978-85-98493-56-5
Valor: 20,00

Um haikai de Mario Benedetti

no carnaval
todos nos disfarçamos
do que somos

***

en carnaval
todos nos disfrazamos
de lo que somos

sábado, 11 de setembro de 2010

Um lindo poema de Rudyard Kipling com tradução de Guilherme de Almeida

SE

Se és capaz de manter tua calma, quando
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires
tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!


IF

If you can keep your head when all about you
Are losing theirs and blaming it on you,
If you can trust yourself when all men doubt you
But make allowance for their doubting too,
If you can wait and not be tired by waiting,
Or being lied about, don't deal in lies,
Or being hated, don't give way to hating,
And yet don't look too good, nor talk too wise:

If you can dream--and not make dreams your master,
If you can think--and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same;
If you can bear to hear the truth you've spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
And stoop and build 'em up with worn-out tools:

If you can make one heap of all your winnings
And risk it all on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breath a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
Except the Will which says to them: "Hold on!"

If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with kings--nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you;
If all men count with you, but none too much,
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds' worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that's in it,
And--which is more--you'll be a Man, my son!

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Encontro local do PROLER

Nesta quinta-feira, dia 09, às 18 horas, participo de um bate-papo entre escritores durante o VIII Encontro do PROLER, na UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus. Os outros convidados são Jorge Araújo (atualmente um dos mais prolíficos escritores e estudiosos da literatura brasileira) e Cyro de Mattos. A mediação será Samuel Mattos, Diretor do Departamento de Letras e Artes.

As atividades do PROLER estão abertas à comunidade interessada, não apenas a acadêmica. O tema deste ano é LEITURA: LETRAMENTOS, POLÍTICAS E PRÁTICAS CIDADÃS. Entre as atividades destaco os mini-cursos que estão sendo oferecidos nas tardes dos dias 09 e 10, cujos temas são: Charges: inferências na construção de sentidos, Machado e a cultura de massas, Leitura em sala de aula: linhas e entrelinhas, A intertextualidade em textos lobatianos, A carta de Caminha: leituras e imaginário, Leitura e Escrita de Cordel - exercício para um letramento em poesia, Círculo de leituras: interação nas práticas leitoras, Bibliotecas e formação de leitores: uma ação cultural, Letramento digital e TICs na formação de leitores, e por fim, Teatralizando o texto literário. Também merece destaque a apresentação dramatizada do poema “Iararana”, de Sosígenes Costa, que o ator José Delmo fará no dia 08, às 18 horas.

Confira a programação completa:
http://www.uesc.br/eventos/viiiencontroproler/index.php?item=conteudo_programacao.php

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Sugestão de leitura

Belíssima conferência de Ildásio Tavares na Academia Brasileira de Letras sobre a poesia de Machado de Assis. Na plateia a presença de escritores como Carlos Heitor Cony, Alberto da Costa e Silva, Ivan Junqueira e Lêdo Ivo.

Vale à pena:
http://www.machadodeassis.org.br/abl_minisites/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=machadodeassis&infoid=263&sid=37

domingo, 5 de setembro de 2010

Vozes femininas da poesia na América do Sul - Maria da Conceição Paranhos

É natural, devido à qualidade da sua obra, exposição crítica e midiática recebida, que ao pensarmos em alguma voz feminina na poesia brasileira, nos lembremos logo de Cecilia Meirelles. Não é o que acontece comigo, pois antes penso em Hilda Hilst, Orides Fontela, Myriam Fraga e Maria da Conceição Paranhos, com quem aprendi muito em largas horas de estudos literários.
Mas o que se pode dizer sobre a obra de Maria da Conceição Paranhos, uma poeta que possui tão profundo entendimento da arte? Qualquer coisa será o mesmo que se valer de uma mola desgastada pelo tempo, pois Conceição é a essência da poesia em esmero, artesania, conhecimento, dedicação e paciência.
Meu primeiro contato com a sua obra foi o mais impactante. Seus primeiros poemas a chegar às minhas mãos foram os luxuriosos “Quatro Sonetos Cardinais”, uma pérola do erotismo em língua portuguesa, deles emergem metáforas e imagens tão bem elaboradas e consistentes quanto aquelas dos maiores cultores do gênero. Outras leituras vieram até me deparar com “Delírio do Ver”, escritos que correm trinta anos de poesia, sobre os quais Ildásio Tavares se manifestou dizendo que “poucas pessoas estarão fazendo poesia tão pacientemente construída, tão inteligentemente elaborada neste país de poemas em rascunho”. Não há como discordar.
Em janeiro de 2008, novamente, a poesia erótica de Conceição Paranhos volta a me arrebatar, desta vez através dos “Sonetos de uma Semana Perfeita”. São oito poemas inéditos a serem inseridos no livro que por enquanto traz o título de “Coita de Amor”. Vejamos um desses poemas:

1. SEGUNDA-FEIRA

A quem não foder bem cá neste mundo
há castigos previstos em triste averno,
e por salvar-te aqui do mal profundo
vai logo te afastando desse inferno.

Corre, ó Amado, deste mal imundo,
e entrai a salvo no meu paraíso,
pois foder é sinal de muito siso –
neste penar da vida, é bem jocundo.

Devêssemos guardar a castidade,
para que Deus nos daria o tesão,
se não para foder com liberdade?

Não duraremos para a eternidade:
se as horas do prazer só vêm e vão,
fodamos já, que é curta a nossa idade.

Penso que se faz urgente a publicação de uma nova coletânea de poemas seus. E se fosse seu editor, começaria pela reunião de toda a sua poesia erótica, édita e inédita, pois tenho certeza, seria capaz de se converter em um marco do gênero em língua portuguesa.

Aqui, os Quatro Sonetos Cardinais e sua biografia:
http://www.revista.agulha.nom.br/mconceicao.html#quatro

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Micro entrevista do mês - Henrique Wagner

Para dizer o mínimo, nossa entrevista do mês é polêmica, pois o entrevistado diz o que pensa não apenas sobre a poesia de alguns autores, mas, sobretudo, como vê o meio literário, que despreza, e no qual está inserido e ao mesmo tempo afastado, como se o aceitasse apenas por conta do grau de mistificação (para o bem e para o mal) que nele se faz presente.
Embora critique nessa entrevista algumas pessoas que me são caras, defenderei seu direito à opinião, pois percebo que se tivéssemos a coragem de olhar para as dúvidas que temos sobre nós mesmos, perceberíamos que somos todos impostores, sem excessão.

Gustavo Felicíssimo – Em que momento você percebeu o que pulsa na poesia e de que maneira se descobriu crítico de arte?
Henrique Wagner
– A poesia como pulsão foi descoberta por mim quando já em compulsão. Eu fazia cerca de cinco poemas por dia. Naturalmente todos do tipo que só o pai gosta. A poesia apenas pulsava, e como sempre fui pálido e frágil, apesar de minha biografia, minhas veias, grossamente verdes, e que apareciam até na testa, mostravam com notória evidência que, em algum momento, o pulso iria ser cortado. Antes que a morte me invadisse, me apaixonei por diversas musas, lesei todas elas e finalmente me tornei um monstro. Uma vez monstro, estava realizada a pulsão como um todo, a negação da morte, de Ernest Becker. Em função da minha natureza eminentemente transida, de fauno, o da coreografia de Nijinsky, e o mesmo que aparece na paisagem de Dante Milano, comecei a esporrar por trás das bananeiras, mas agora com todo o direito a que se arroga uma criatura livre de impostos e do título de eleitor. Esse direito me acalmou um pouco, e, junto ao Rivotril de todo dia, passei a estudar Poética, a ler os clássicos e a ouvir os preceitos de Ildásio Tavares e Maria da Conceição Paranhos. Lendo o Eclesiastes fiquei, paradoxalmente, mais vaidoso ainda... As veleidades me excitavam mais que Sulamita. Mas aprendi com Conceição Paranhos a lavar o vaso sanitário, cada vez que me achasse gênio, e então, minha poesia rendeu muito mais, meu lixo aumentou – sem lixo não se faz boa poesia - e eu parei de publicar, em respeito a Ideiafix e a mim mesmo, que me tornei crítico. Agora entra a segunda parte de sua pergunta. O crítico precisa ser crítico de si mesmo, antes de ser crítico dos outros. Em verdade não precisa: é assim que acontece. O que equivale a dizer que, se todo poeta fosse crítico de si mesmo, teríamos menos poesia – ruim – e talvez mais silêncio. Ou crítica. Mas certamente mais silêncio, uma vez que a produção de poesia diminuiria e o crítico, conseqüentemente, iria rareando. Ao poeta cabe a posição de acurado leitor, pois está diante de uma sinuca de bico digna da Ode Triunfal: é preciso ser bom leitor para ler a si mesmo. Todo bom poeta é, inapelavelmente, um bom leitor. Do contrário, como decidir que seu poema está pronto para os outros? Alguém emprestaria um livro do qual não tenha gostado? Mas o que tenho visto é uma porção de livros ruins emprestados ao público. Mas não se deve confundir o bom leitor com o leitor contumaz. Não há pessoa que leia tanto quanto a Gerana Damulakis, que faz questão, assim como Mayrant Gallo, de provar a todo o planeta, que lê tanto os judeus quanto os palestinos, e isso em plena Faixa de Gaza. Mas que adianta, se essa leitura não é bem processada? (outra coisa muito curiosa é que ambos, Damulakis e Gallo, sempre citam autores incomuns com uma familiaridade, com uma intimidade que nos faz pensar em noites perdidas, conversando com russos, estonianos, húngaros, suecos e japoneses, e tudo em português mesmo, é claro – ou em grego. Quando citam um autor da Chechênia, é num tom de que leram o sujeito na infância, quando o sujeito ainda nem escrevia!). Aprendi, em Fisiculturismo, que o músculo só cresce no descanso, de modo que não adianta malhar quatro horas por dia, todos os dias. Portanto, não adianta ler muito. Poucos têm a cegueira visionária de Borges, para quem os livros lidos eram motivo de maior orgulho que os livros escritos por ele. É preciso educar sua leitura, e talvez um bom começo seja pelo Didascalicon – Da arte de ler, do Padre Hugo de São Vítor. Apenas José Guilherme Merquior me impressionou pela equação “muita leitura X grande aproveitamento”. Há um exemplo significativo: um rapaz chamado Cleberton Santos. Lendo o livro dele, de poemas bastante magros e insípidos, percebi que todo capítulo era iniciado por uma citação poética, um verso ou conjunto pequeno de versos. Mas o que mais percebi é que todos os versos escolhidos pelo autor eram péssimos! Então ficou mais fácil entender a qualidade da poesia do Cleberton, com seus memoráveis calangos e sua mania de criptografar o nada. Aqueles versos que parecem dizer algo muito profundo, de tão estranho, e que fazem com que nossa vergonha procure algum sentido – no poema e na vida – para não desacreditar completamente da poesia baiana. Tenho a impressão de que esse rapaz escreve em latim: não há artigos em sua poesia. Tudo é tão moderno... Parece o Francisco Alvim de Lagarto. Pois bem, assim como o homem sábio é seu próprio médico, o poeta deve ser seu próprio crítico, e para isso, a leitura e a honestidade cultural são fundamentais. O poeta é o primeiro leitor de si mesmo e, por conta disso, toma para si uma enorme responsabilidade como crítico de poesia. Eu me tornei crítico porque aprendi a ler. E decidi compartilhar minhas leituras, mais que meus poemas.

Gustavo Felicíssimo – Existe a possibilidade de em algum momento a crítica e a poesia se amalgamarem?
Henrique Wagner
– Não só existe como já se deu essa possibilidade. Indo mais longe ainda, vejo muito mais poesia nos ensaios e conferências de Eliot do que em toda a poesia feita nos dias de hoje, no ocidente. Posso dizer o mesmo em relação aos textos de Gaetan Picön, I.A. Richards e Terry Eagleton, dentre outros. Mas voltando ao cerne da pergunta, o encontro entre a crítica de Antonio Carlos Secchin e a poesia de João Cabral de Melo Neto é dos mais amistosos. A leitura que Ildásio Tavares fez, e faz, da poesia de Machado de Assis, razoavelmente estudada por Claudio Murilo Leal, em livro publicado pela Biblioteca Nacional, é brilhante, notadamente acerca do famigerado soneto a Carolina, essa mulher que é, antes de tudo, soneto. O mesmo pode ser dito do encontro entre a crítica de Tania Franco Carvalhal e a poesia de Augusto Meyer – Tania melhora, consideravelmente, a poesia folclórica desse gaúcho um tanto enfadonho -, e ainda se pode citar o trabalho de Ivan Junqueira acerca de Baudelaire, Dylan Thomas, Eliot e Dante Milano. Encontros felizes. Mas não gosto de pensar em amálgama. Que sejam encontros, no máximo. Bifásicos.

Gustavo Felicíssimo – Por fim, em que medida a poesia perde ou ganha com tais questões?
Henrique Wagner
– A poesia em si não perde nada. Perde o poeta, que vai se tornando suprematista sem querer. A guerra biológica, o antrax da crítica de poesia está nos jornais. Mais, muito mais que nos livros, sobretudo num país de analfabetos e com um presidente sem regência – sou monarquista. A imprensa tem o poder de criar uma legenda e destruir um grande artista, ou pelo menos a carreira desse artista. Se esse grande artista for também um sábio, menos mal, ele saberá fazer bom uso da arte-fátua. Mas há um Picasso, de século em século... Enquanto Modigliani vende uma tela para comprar carne. Vejamos o caso Alberto Korda, que imortalizou a figura do serial killer Che Guevara, com seu Guerrilheiro Heróico, que só engana Maradona e Carlos Pronzato, argentinos, é claro. Aquela foto tirada em 1968 é quase tão famosa quanto a marca da Coca-cola, e fez com que jovens do mundo todo usassem camisetas, bottons e boinas sem ter o mínimo de conhecimento da história. Falo da história real, a caixa-preta, e não das cartas de Frei Beto. Che Guevara foi considerado por Sartre o único homem completo do mundo. Sartre foi aquele filósofo pop que ficou famoso por ter uma relação aberta com Simone de Beauvoir, por ter negado o Nobel em função de Pasternak ter vencido anos antes, e que panfletou a favor de Stalin. Pois bem, inventaram um líder até mesmo amoroso, lírico etc. Estou falando da imprensa – que não trabalha sozinha, é claro. Aqui na Bahia vem acontecendo algo muito grave. Há um cartel, um trabalho conspiratório, digno dos Protocolos dos Sábios de Sião, abrindo as portas para a maçonaria liderada por Aleilton Fonseca e seu simpático ex-bigode. De lado, preguiçosamente porque confiante, há um Carlos Ribeiro, jornalista, esperando as benesses de sua generosidade aprés-midi, ainda que chegue às bancas de manhã cedo. Serpenteando em campanha, e tricotando com Glaucia Lemos as platitudes mais afetadas, Luis Antonio Cajazeira Ramos vai fazendo amizade com Kátia Borges, articulista do jornal A TARDE, no caderno de cultura. Aliás, essa moça sofre um verdadeiro assédio moral. É a musa de todos os poetas baianos, mesmo não sendo encantadora – para quê? E assim não há crítica, porque não se fala mal de quem o elogia, nessa profícua troca de elogios. Kátia Borges, em menos de um semestre, foi convidada a participar de três eventos na Academia de Letras da Bahia! E não há um texto sequer, até hoje, questionando as deficiências de sua poesia – porque as há, embora ela escreva bem. Fico pensando em Márcia Tude, poeta inspiradíssima e com uma técnica admirável, fazendo belos sonetos, versos cheios de uma cadência envolvente etc. Pois bem, a vencedora do Prêmio Braskem 2008 jamais foi convidada a mesas redondas desse ninho. Bom é que a Márcia não queima as pestanas com vida literária. A essa hora deve estar queimando a pele, ao sol, numa praia próxima de Santo Amaro de Ipitanga. E há ainda o caso da Fabrícia Miranda, também vencedora do Braskem, de 2002. Quem quiser ler boa poesia que vá ao blog da moça. Cajazeira Ramos inventou um ciclo de encontro entre escritores – é assim mesmo, entre escritores, porque quase não há outro tipo de pessoa nesses eventos, que existem mais para serem registrados, historicamente, pela imprensa - na Academia de Letras da Bahia porque pensa numa cadeira para descansar suas varizes. As saturnálias e lupercálias se tornaram tão importantes aqui na Bahia que hoje só o invejoso diz que não gostou de algo. Eu, portanto, sou um eterno invejoso. Invejo até mesmo a poesia de José Inácio Vieira Melo, com seu ânus cheio de rosas (eu me refiro a seus recentes poemas anais) e uma leitura tão pobre da Bíblia, do Cântico dos Cânticos – clichê, quando se quer mexer com certa polêmica erótica, a partir do sagrado – e do corpo da mulher. Aliás, é curioso que sempre que essa turma faz poesia erótica, fala apenas em ânus. Cleberton Santos escreveu Aroma de Fêmea, livro de um mau cheiro terrível, pura flatulência. É aquela velha estratégia de aparecer pelo choque, como se cu ainda chocasse. O da galinha choca... Ainda pensando na Kátia Borges, lembro que, quando ela estreou, com seu De volta à caixa de abelhas, apareceu na capa do Caderno 2, ocupando página inteira, uma foto imensa e entrevista. Eu jamais vi um estreante obter tanto espaço na imprensa... E não era um livro premiado, nada disso, não havia furo jornalístico algum. Tratava-se apenas do lançamento de um livro! Quantos livros de poesia são lançados na Bahia, por mês? Só o Claudius Portugal vem enchendo estantes... E as edições do autor? Ou seja, é a Rede Globo divulgando suas novelas por meio do Vídeo Show. Bem, essa crítica vem comprometendo seriamente o trabalho de poetas grapiúnas excelentes, por exemplo, reunidos por você em uma bela antologia, sem resenhas em Salvador, salvo engano, chamada, muito justamente, Diálogos. O fato é que eles resenham pessoas, não livros. Para ter resenha por aqui, ou o poeta é aluno de Aleilton Fonseca ou é um dos 101 dálmatas-poetas descobertos por Inácio, sabe-se lá em que olho d’água, todos jovens e pobres leitores de seus livros lançados pelo erário público – leia-se Fundação Cultural do Estado, via Lúcia Carneiro, publicada por Inácio na revista Iararana. O jornal A TARDE, ainda o mais lido da Bahia, mesmo caindo das pernas, é funcionário da ALB. Mas é um círculo vicioso, pois foi o jornal quem ajudou a eleger Aleilton Fonseca acadêmico. E assim vão-se construindo teiados. Aleilton põe o Carlos Ribeiro para dentro e Ildásio Tavares e Maria da Conceição Paranhos, pasmem, ficam do lado de fora da quadrilha de Drummond, porque não são mesmo de fazer parte de quadrilha. Ainda quero pensar que a turma que está no poder, ou seja, com a mídia na mão, não tem idéia da responsabilidade que cai sobre si, quando se encontra na posição de definir toda uma história da literatura em movimento. Há muito tempo não se faz poesia, e isso o Benedito Nunes já havia falado há anos, afirmando que passou o tempo da arte contemplativa, que não vivemos em tempos de poesia, mas de cinema, de tecnologia. O que se faz hoje? Relações públicas. Não por acaso o poeta se tornou produtor cultural. É o que chamam agitador cultural. Até o Elizeu Moreira é agitador cultural, mesmo falando javanês. Essa profissão consiste em fazer o mesmo de sempre: encontro entre poetas e o público. Esse meio é ótimo para fazer amigos e influenciar pessoas, e assim Kátia Borges vai fazendo parte de mesas cada vez mais redondas. Um poeta, quando convidado, sente-se o plural majéstico, oficial, sente-se hebreu, o escolhido. E, cheio de comoção, quer, de todo jeito, retribuir. Assim começa a feira, o fisiologismo. Isso não vai acabar nunca, embora possa melhorar. Fui banido de todos os jornais e revistas de Salvador por ter honestidade cultural – é apenas essa a honestidade que tenho. Não se separa, de jeito algum, a pessoa da obra. Genet seria boicotado por aqui. Villon também, e mesmo Rimbaud, todos criminosos. Imagine, a Bahia se dando ao luxo de boicotar um Marquês de Sade, ou o obscuro John Cleland, autor de Fanny Hill... Salieri deixaria Mozart para trás, por conta de seu beatismo. Ou seja, apenas os medianos seriam contemplados pela imprensa. Quando lancei o livro As horas do mundo, pelo Selo Letras da Bahia, passei a ser convidado para tudo quanto era evento. Não imaginavam que eu tinha vida própria e não pretendia memorizar poemas enormes do Ruy Espinheira Filho para sair recitando diante dele, em troca de prefácio e algo mais. Eu não tenho amigos no meio literário porque não gosto dos livros dos escritores baianos, em sua maioria. É preciso gostar da obra para comprar geladinho na casa do poeta. Mesa de bar, então, nem pensar. Há ainda os laquês e pós dos coquetéis, quando as socialites literárias da Bahia dão seus beijinhos suspensos no ar. Isso é a literatura na Bahia do século XXI. E com essa literatura, e com essa imprensa, perde o poeta. Mas não perde a poesia, que é a alma desse negócio.

Henrique Wagner
é baiano de Salvador, onde reside. Nascido em 1977, é poeta, contista, ensaísta e crítico de cinema, teatro e literatura. Colaborou com os jornais A TARDE, Correio Brasiliense, Rascunho, entre outros. Publicou os livros de poemas O grande pássaro e As horas do mundo, e o livro de ensaio A linguagem como estética do pensamento.

Textos de Henrique Wagner no site: http://www.expoart.com.br