quarta-feira, 28 de julho de 2010

A impressionante influência vocabular da literatura

Por W. J. Solha
Tornou-se lugar-comum, na imprensa, reportar fatos como o acidente com o avião da TAM, que matou 162 passageiros, ou o deslizamento de terra no Morro do Bumba, em Niterói, como “tragédias anunciadas”, influência evidente do belo título que é o Crônica de uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez. Claro que isso não é de hoje. Todo sujeito ciumento é um “Otelo”, desde que Shakespeare escreveu a peça a respeito do suplício do Mouro de Veneza. Todo homem excepcionalmente forte é um “Hércules”, desde que Eurípedes encenou a tragédia Heracles entre os gregos, Sêneca levou ao palco o Hércules sobre o Eta, entre os romanos. Do mesmo modo, toda viagem ou percurso repleto de percalços passou a ser “uma odisséia”, desde que Homero escreveu a história de Ulisses, cujo nome grego era Odisseu. Daí 2001 – Uma Odisséia no Espaço, o filme de Stanley Kubrik – daí Ulisses, o famoso romance de James Joyce, que consome cerca de 800 páginas pra contar o que foi um dia – 16 de junho de 1904 - na vida de um certo dublinense chamado Leopold Bloom. Se esse caminho, porém, é de mais sofrimento do que aventura, o rótulo é o de “via-sacra”, “via-crúcis” ou “calvário”, por conta do peso do texto evangélico, que transformou, também, todo traidor em “judas”, toda vítima em “cristo”, todo mau caráter em “judeu”, toda maldade humana em “judiação”, todo homem caridoso em “bom samaritano”, todo fim do mundo em “apocalipse”. Do mesmo modo, abrindo para o Velho Testamento, todo começo de qualquer coisa é “gênesis”, todo assassino é um “Caim”, todo lugar maravilhoso é um “paraíso”, toda debandada é um “êxodo”, toda enchente é um “dilúvio”, todo vidente é um “profeta”, toda figura com salvadora liderança é “messiânica”, toda decisão sábia é “salomônica”, todo embate desproporcional, tipo camundongo Jerry contra o gato Tom, Oliveiros contra Ferrabrás, Vietnã versus Estados Unidos, é uma luta de “Davi e Golias”.

Quem nunca classificou alguma cena terrível de “dantesca”, por conta da Divina Comédia de Dante? Quem nunca chamou o herói de uma causa perdida – como Vitorino Papa Rabo, de Zé Lins; ou o Príncipe Michkin, de Dostoiévsky - de “quixotesco” devido à obra de Cervantes? Quem nunca disse que um sujeito em dúvida terrível é “hamletiano”? Caramba, já vi muita gente demasiado séria ser chamada de “Dom Casmurro”, por causa do livro de Machado de Assis. E de “masoquista”, devido ao romance A Vênus de Peles , de Leopold Ritter von Sacher-Masoch, no qual um personagem somente chega ao orgasmo depois de surrado pelo amante da esposa. Claro que você acaba de se lembrar de que “sádico”, se deve ao Marquês de Sade e a seus romances – como Os 120 Dias de Sodoma. Do mesmo modo, “pantagruélico” é o comilão por excelência, desde que Rabelais escreveu seu romance Pantagruel, e “acaciana” é sempre uma figura pública tipo Conselheiro Acácio,pseudo-intelectual pomposo, desde que Eça de Queirós escreveu o romance O Primo Basílio.

A quanto mulherengo já demos o nome de “casanova”, devido ao libertino escritor Giácomo Casanova, que – segundo afirma nos vinte e oito volumes de suas memórias – enumerou cento e vinte e duas mulheres que possuiu ao longo da vida! Ou de “Don Juan”, por causa do personagem fictício que, por suas inúmeras conquistas amorosas, compareceu em várias obras de arte, como a peça Don Juan Tenório, de José Zorrilla, e a ópera Don Giovanni, de Mozart!

Um dos casos mais famosos de apropriação desse tipo é o de Freud, que viu no personagem clássico de Sófocles – Édipo Rei – o protótipo do portador do complexo emocional que envolve amor e ódio na relação filho-mãe-pai, tendo Gustav Jung estabelecido a mesma relação filha-pai-mãe no Complexo de Eletra, partindo das peças de Sófocles e Eurípedes que contam como essa personagem matou a mãe, Clitemnestra, pra vingar a morte do pai, Agamênon.

Quanta História por trás de cada palavra!
(26-07-2010)

W. J. Solha é escritor, dramaturgo, ator e poeta paulista, radicado na Paraíba

ATENÇÃO!
O autor oferece o seu belíssimo e intrigante romance "Relato de Prócula" a quem se interessar por ele. Basta que mande nome e endereço para wjsolha@superig.com.br que receberá o livro pelo correio, sem qualquer despesa.

4 comentários:

OFICINA DE CORDEL disse...

Gustavo, esse camarada sabe das coisas, é um texto excelente para trabalhar em sala de aula sobre os 'clichês' e suas origens. Já pedi o livro. Valeu pela dica!

Marcantonio disse...

Muito bom ver aqui um texto de W. J. Solha, de quem sou admirador. Excelente. Certamente essa lista de casos de influência ainda poderia ser muito aumentada.

Abraço.

Anônimo disse...

Obrigado Gustavo.
Gostei muito de ler. E deixo aqui a minha reflexao sobre o que diría um outro homem, igualmente versado em letras, mas emergido da esfera chinesa, talvez junto com um sábio indiano (nao ocidentalizado). Pagava para entender o diálogo. Até onde chegou Perseu e onde pousou "holocausto".
Abraço,
Pedro

Jeferson Cardoso disse...

Gostei de saber das histórias das palavras. Acertou na escolha do post.
Jefhcardoso do
http://jefhcardoso.blogspot.com