segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

2º Poema da Infância

Do alto deste outeiro eu vejo o mar,
infinito em seus mistérios.
Aquele menino, de olhar em brasa,
via barquinhos vencendo as marés.
Aquele menino, o sol não domava,
tampouco a chuva.
Ele tinha o mundo na cabeça
e as idéias iluminadas por vaga-lumes.
Para aquele menino a vida não teria serventia
se não pudesse ser o vento na vela
tangendo as caravelas para além do imaginável.


15.02.08

domingo, 27 de dezembro de 2009

1º Poema da Infância

O menino que eu fui não é mais
e esse é um grande acontecimento
na vida de quem ouve o silêncio das borboletas.
O menino que eu fui e os seus pertences
ficaram entalhados na memória,
também ficaram os acontecimentos:
a ‘badogada’ que eu dei numa pomba
e que para aliviar meu remorso não morreu;
as brincadeiras de ‘ana mula’ e ‘mãe da rua’;
as disputas de bilboquê
e o ‘paredão’ com bolinhas de gude.
Era teimoso aquele menino!
Não comia se houvesse uma bola por perto
ou se um primo quisesse brincar;
Não dormia enquanto houvesse vento
e uma pipa para ‘empinar’.
Aquele menino desgastou-se no tempo!
O menino que eu fui não é mais.


08.01.2008

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Acabo de ouvir o programa SUPERTÔNICA, do Arrigo Barnabé, com a presença de Neuza Pinheiro. O programa foi gravado muito naturalmente, improvisando, relembrando histórias. Tudo muito bom!
Arrigo apresenta PELE & OSSO, livro da Neuza, vencedor do Prêmio Nacional Lúcio Lins e
o trabalho musical autoral Olodango.

Pra quem quiser ouvir a qualquer momento:
www.radarcultura.com.br/node/33741

Jiddu Saldanha novamente

Dessa vez com um Haiga impecável. Diz ele que fez questão de fotografar e criar o poema de modo que traduzisse o sentimento que pretendia transmitir.
Atentem para as formigas sobre o arame
(clique na imagem para vê-la maior)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Saiu o resultado do Concurso Literário Bahia de Todas as Letras - 4ª Edição

O concurso é realizado pelas editoras Via Litterarum e Editus (Editora da UESC), com patrocínio para os primeiros colocados da Fundação Chaves. Ano após ano, a boa remuneração para os primeiros colocados vem aumentando o interesse por esse concurso.
Tive a grata felicidade de ser premiado em duas categorias: Poesia e Literatura de Cordel. Esta última em parceria com meu amigo Piligra.

RESULTADOS

POESIA
(Cada autor inscreveu três trabalhos, sendo avaliado o conjunto)
Vencedor: Gustavo Felicíssimo
Obras: “Procura”, “O credo de Don Juan” e “Monólogo de Don Juan”

LITERATURA DE CORDEL
Vencedor:
Gustavo Felicíssimo e Lourival P. Piligra Júnior
Obra: “A peleja virtual entre dois poetas arretados”

ENSAIO LITERÁRIO
Vencedora: Maria José de Oliveira Santos
Obra: “Um caso de amor na Cidade de Salvador da Baía de Todos os Santos”

CRÔNICA
(Cada autor inscreveu três trabalhos sendo avaliado o conjunto)
Vencedor: Manoel Souza das Neves:
Obras: “Mentiropédia”, “Eu tenho medo de mulher” e “Auxílio – Funeral”

CONTO
(Nessa deu empate)
Obra: “Amaro”, de Tiago Santos Groba
Obra: “O mergulho”, Denize Ravizzoni

Mais informações no site da universidade:
http://www.uesc.br/editora/index.php?item=conteudo_concurso.php

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

belíssimo haikai de Jiddu Saldanha

sentada no ninho
a sabiá e os filhotes
bela manjedoura

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Três poemas de natal

Evidente, cada ser sente o natal à sua maneira. Reuni três poemas de autores de tempos distintos, que veem a data sob prismas diferentes. Um deles é de minha autoria. Os outros são de Vinícius de Morais e Fernando Pessoa. Em Vinícius encontramos o binômio nascer/morrer, em síntese. Já em Pessoa há um quê de nostalgia, de melancolia, de solidão. Naquele que compus há um estranhamento frente à realidade do nosso tempo.

Poema de Natal
Vinícius de Moraes

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


Poema de Natal
Fernando Pessoa

Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!


Poema de Natal
Gustavo Felicíssimo

Dezembro é o cruel mês do natal,
hoje, a sua véspera,
além disso, faz um calor insuportável.
Há grande descontentamento no país,
enormes congestionamentos nas cidades
e as pessoas parecem felizes.
A miséria continua no seu galope
e as pessoas parecem felizes,
inclusive os miseráveis.
Esses se abundam nas calçadas
e mendigam com seus filhos
e com os filhos de outros desgraçados.

Negócio promissor...
Vou sair pra ver o mar!

Renga para o Rio Cachoeira

A renga é uma forma poética japonesa largamente praticada por Bashô (ilustração ao lado), o grande mestre, e que, desde o século XVII, realça a arte da transição ao encadear, respectivamente, estrofes sasonais de três e dois versos escritos por dois ou mais autores. Originalmente, uma renga é composta de 36 estrofes, em homenagem aos 36 poetas imortais do Japão. Também é chamda de Kasen, poesia dos sábios.
Eu e o poeta George Pellegrini compusemos uma, da qual trago as cinco primeiras estrofes. Os tercetos são de minha autoria, os dísticos, evidentemente, são do meu parceiro. Esperamos que gostem!


I
madruguei chorando –
silenciou-se o grande rio
ao me ver nascer

o lusco-fusco da aurora
descortinou as estradas

II
e seguiu seu curso
infinito em suas curvas
terno em meu olhar

espelho d’água revela
outro rosto ensimesmado

III
silente e calado
ele desfez os mistérios:
canções ao luar.

os gritos da acauã
faziam o coro na mata

IV
puro em sua nascente
desce o rio cortando o campo
espalhando vida.

e na calma dos remansos
a morte sobe fecunda

V
e vai todo em brasa
dentro da noite ferida
onde os sonhos erram

os pesadelos comandam
a saída para o mar

domingo, 13 de dezembro de 2009

O primeiro livro brasileiro de haikai

Que Deus entendeu de dar/ A primazia/ Pro bem, pro mal/ Primeira mão na Bahia/ Gilberto Gil
Para Carlos Verçosa, autor de “Oku: viajando com Bashô”, coube ao poeta, romancista e crítico baiano, Afrânio Peixoto (foto ao lado), não apenas o mérito pioneiro de introduzir e divulgar o haikai no Brasil, em 1919, apresentando o haikai como um epigrama lírico, em “Trovas populares brasileiras”. Peixoto também teria sido o primeiro brasileiro a publicar um livro de haikai.
Em Missangas, 1931, no capítulo X, após o ensaio “O haikai japonês ou epigrama lírico”, Peixoto publica 52 haikais de sua autoria. Diz Verçosa que se trata de um "autêntico livro inserido em um outro livro". Desse modo, o escritor baiano não só deve ser considerado o precursor do haikai no Brasil, como também o primeiro poeta a publicar um livro de haikai no nosso país. Até então, esse mérito era de Siqueira Júnior, com o livro "haikais", publicado São Paulo, no ano de 1933.
Polêmicas à parte, segue alguns haikais da lavra de Afrânio Peixoto:

Na poça de lama,
Como no divino céu,
Também passa a lua.

***

Um aeroplano
Em busca de combustível...
Oh! é um mosquito.

***

O sabiá canta,
Sempre numa mesma canção:
O belo não cansa.

Novo livro de Carlos Pronzato

Comemorando 20 anos de baianidade, o meu amigo Carlos Pronzato, escritor, diretor teatral e cineasta argentino, no dia 14 de dezembro, segunda feira, às 18 horas, lança na Fundação Casa de Jorge Amado, Centro Histórico de Salvador, o livro “Jorge Amado no elevador e outros contos da Bahia” (84 páginas, Editora A, Rio de Janeiro). O livro é composto de onze contos que transitam no universo mágico da Bahia, perfazendo um itinerário literário que pretende também ser uma homenagem a um dos maiores escritores do Brasil, Jorge Amado, que empresta o seu nome ao conto que dá titulo ao livro.

Aproveito a deixa para republicar uma micro entrevista que fiz com Pronzato.

Gustavo Felicíssmo – Meu caro Pronzato, como o cinema influi na sua poesia, ou, se preferir, como ambos se unem, se conectam, em sua obra?
CP
- Há inúmeros filmes que com o seu instrumental técnico e narrativo específico se aprofundam em universos poéticos imagéticos, com maior ou menor sucesso, segundo as expectativas do diretor. Penso em Bergman, em Fellini, em Tarkovski, em Resnais, por exemplo, cujas explorações da subjetividade criaram mundos cinematográficos imaginários, poéticos. Esses universos criados a partir da sensibilidade do artista cinematográfico estariam em condições de influenciar, de aceder, ou, melhor dizendo, de ocupar – já que uma ação involuntária – o território do poeta? Acho que sim, no meu caso, já que, por força do meu trabalho diário nos dois suportes, a criação constante de pontes entre Terpsícore e a criação póstuma de Dionisios, é inevitável. Apesar de o documentário ter preeminência na minha obra, se essa conexão existe, penso que a influência se dá num percurso de ida e volta, de retroalimentação, fragmentário e anárquico que consegue construir um diálogo na sua inerente incompletude. Assim, imagens registradas pelo nosso olhar num filme, articuladas no seu discurso de conjunção de elementos técnicos, cenográficos, interpretativos e musicais, podem disparar novas imagens no seu caminho ao papel impresso e retornar ao filme acrescido de poesia. É um processo complexo, como a própria criação poética, nunca definitiva, cujos mecanismos de elaboração – ainda bem - ignoramos, e por tanto de infinitas possibilidades.

GF - Hoje, a poesia no cinema estaria mais na atitude do cineasta frente ao seu próprio tempo ou não?
CP
- Sempre tomando como base o cinema de compromisso social, com toda certeza sim. Hoje e sempre. Se houver apenas uma única pessoa que enxergue emoção movilizadora nas imagens de uma rebelião – e isto se estende a todo tipo de luta travada pela emancipação humana, individual ou coletiva -, de um ato de coragem e valentia frente aos poderosos e saqueadores de sempre, ou inclusive, num estágio posterior, num processo de construção social igualitária, haverá poesia, haverá algo além de uma feliz combinação de palavras num papel. E, levando em conta a penetração massiva que o cinema – e os seus derivados televisivos e internéticos - tem no mundo contemporâneo, quem assume esta atitude de inscrever sua leitura do mundo - e no mundo -, além da sua particular transcendência como indivíduo, estará muito além da criação de um espaço íntimo e individualista, forjando poesia coletiva.
Também podemos encontrar a atitude do cineasta com propostas de transformação social, que por profundas discordâncias com os processos políticos contemporâneos conhecidos assume um relato mais pessoal para se expressar politicamente, e não por isso menos comprometido.
E parafraseando o poeta: tudo vale à pena, quando a atitude não é pequena.

GF - Se o cinema é a indústria dos sonhos, a poesia seria o próprio sonho, a utopia maior?
CP
- Há um cinema, após sua fase de entretenimento de feira, em paralelo à fase de implantação do capitalismo, que impôs seus sonhos industriais de consumo e de perpetuação desse modelo econômico norte-americano, trasladado depois a outras cinematografias do mundo que repetiram esse modelo de acumulação econômica. Sonhos todos, técnica e industrialmente primorosos, que alimentavam – e alimentam - o imobilismo, a contemplação pura e simples de um modelo único de consumo, de uma realidade de eternos e inatingíveis oásis – visão hoje relegada aos subprodutos noveleiros. Felizmente, há outros cinemas que souberam explorar outras inúmeras possibilidades estéticas e aquelas geralmente denominadas políticas. Nestas últimas, há o objetivo de trasladar o sonho libertário da tela para a realidade numa tentativa migratória tão utópica quanto necessária.
Mas em fim, a utopia, o não lugar, é o espaço da poesia. Cabe à realidade e ao cinema – às suas diferentes linhas e gêneros – se aproximarem dela.

Blog do Pronzato:
www.lamestizaaudiovisual.blogspot.com

sábado, 12 de dezembro de 2009

assim como a chuva
uma lágrima acontece
quando precipita

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Pequeno soneto da graça

a Bernardo Linhares


Sendo amigo de um amigo,
o sorriso me ultrapassa,
e por vezes não consigo
me conter de tanta graça.

Em seu berço meu abrigo,
numa infância que não passa,
eis porque tanto me obrigo
a beber na mesma taça,

em que bebe - eu, que não bebo!
E a comprar no mesmo sebo
livros tais de poesia.

E ao pensar em seu sorriso,
rio mais do que preciso
e do que não sorriria...

Henrique Wagner

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Um poema de Silvério Duque

Tudo bem, alguém poderá me dizer que o poeta do azul é Carlos Pena Filho. O seu “Soneto do desmantelo azul” é mesmo uma jóia, mas esse heróico do Silvério Duque, convenhamos, tem seu lugar, um soneto espirálico, marcado por esse último verso: “pois no morrer do azul, nós retornamos”, que deixa o poema em aberto. Muito bom mesmo!

O CARROSSEL DE MARK GERTLER

O carrossel, de Mark gertler (1916):

à Senhora Claudia Cordeiro, un souvenir...

Para Carlos Pena Filho

Por que pintei de azul a nossa estrada?
Por não trazer um céu sobre os sapatos.
Então, busquei, em gestos insensatos,
despir, do azul, o Azul da madrugada.

Para exigir então o azul ausente,
que se espargiu em tuas alpargatas,
roubei de ti o azul das coisas gratas,
que, em teu olhar, nasceu tão simplesmente.

Mas, vestidos de azul, nem recordamos,
haver tantos azuis que azuis se amassem,
qual o Mar e o Céu, no azul, nos espelhamos...

E, perdidos no azul, nos contemplamos,
porque, do azul, as coisas sempre nascem,
pois, no morrer do azul, nós retornamos.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Outro novo haikai

outra vez aqui –
céu e mar se confundem
nas minhas retinas

Um novo haikai

folhas ao vento
são como libélulas –
lume pro haikai

***

a flor que caiu
alça vôo de volta ao ramo:
uma borboleta

(famosíssimo haikai de Arakida Moritake)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Ildásio Tavares: existência consagrada à poesia

texto que apresentei no encontro literário da Academia de Letras da Bahia

É impossível ater-se à história da literatura baiana no Século XX sem se dedicar demoradamente a Ildásio Tavares. É tão vasta a sua obra, sua formação e suas incursões literárias que seria inviável e extravagante, no curto tempo que temos, discorrer sobre essa questão.
Mas vale lembrar que aos nove anos de idade Ildásio já tinha lido toda a obra infantil de Monteiro Lobato, que antes do ginásio era fluente em latim, francês e inglês. Formado em Direito e Letras pela UFBA, tem Mestrado feito na Southern Illinois University, USA, em 1971; Doutorado em Língua Portuguesa na UFRJ, em 1984; e Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa, com bolsa do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1990.
Mas como literatura não se faz com nomes nem com títulos, ao seu agente sempre é exigido produção, renovação ou silêncio, como é o caso de muitos escritores que não passaram de um par de livros, ou até mesmo de um único, o que não o impede de ter a obra reconhecida e valorizada, como é o caso de Sosígenes Costa, grapiúna como Ildásio, falecido em 1968 com apenas um livro publicado.
Esse, certamente, não foi o caso de Ildásio Tavares que estréia na poesia no ano de 1967, com poemas inseridos na antologia “Moderna Poesia Bahiana”. Seu primeiro livro veio ao público em 1968, com “Somente Canto”, a esse seguem-se outros, entre os quais se destacam: “Tapete do Tempo”, 1980; “IX Sonetos da Inconfidência”, 1997; e o moderno “Odes Brasileiras”, de 1999.
Talvez o próprio vate não se dê conta, mas também podemos acrescentar à sua biografia a importante e valorosa contribuição que dá ao futuro da poesia brasileira ao abrir, generosamente, as portas da sua casa aos jovens escritores baianos que para lá marcham semanalmente em busca de um papo agradável e, principalmente, conselhos sobre seus escritos.
Ali, na varanda da casa, na espaçosa sala de visitas ou no escritório repleto de livros e correspondências, tendo ao fundo o mar de Itapuã, muita gente ouviu Ildásio falar sobre a arte de escrever. Ali, sob sua pena severa, porque severa é a poesia, muita gente aprendeu a escandir um verso, muita gente ouviu falar pela primeira vez em soneto, redondilha, ode ou terça rima. Ali, muitos livros, poemas, poetas e críticos foram estudados à exaustão.

No dizer de Jorge Luis Borges um livro somente merece ser lido se for capaz de entreter. Foi dessa forma, me entretendo, dando inúmeras gargalhadas, literalmente, que li ainda no original o livro mais recente de Ildásio Tavares, “As Flores do Caos”, 2009, uma obra que reúne sonetos selecionados pelo autor, frutos de uma vida inteira dedica à arte, especialmente à poesia. Entre eles, “IX Sonetos da Inconfidência”, escolhidos para esse encontro.
Em meio a tão bons poemas, cada leitor acaba tendo o seu preferido. Certo mesmo é que tudo gira em torno de personagens importantes da Inconfidência Mineira. Esses personagens se transformam em símbolos, e as composições em versos decassílabos, com grande versatilidade e muita inventividade.
Sentia-me feliz ao descobrir em cada poema uma variação métrica própria, a forma como o poeta desloca a cesura dos versos sem perder a musicalidade. Aqui o de Arte Maior, ali o Sáfico, o Heróico. Vemos a estrutura do poema cedendo ao impulso da emoção.
O destaque maior fica por conta do poema III, “O Alferes”. Trata-se de um grito angustiado de Joaquim José da Silva Xavier, dentista e militar de baixa patente que ficou sendo o símbolo maior do movimento. Enforcado, teve seu corpo esquartejado e seus pedaços exibidos em lugares por onde pregou ideais de liberdade. Diz o alferes no primeiro quarteto: Meu coração é um arsenal de horrores/ e dores que atropelam meu país./ Gargalha, puta! Zomba, meretriz!/ O dia há de chegar dos teus senhores.
Fábio Lucas, um dos mais importantes críticos e conferencistas internacionais de literatura brasileira, unanimemente apontado como um dos críticos literários mais importantes do Brasil, reportou-se sobre estes poemas dizendo que o trabalho de Ildásio Tavares vai além do divertimento semântico. Sob pretexto de celebrar personagens de nossa história, constrói sonetos carregados de sentido, mensagens plurivocais, pejadas de palavras explosivas, pois, no curso da sonora abundância, se atiram além das idéias, como uma carruagem iluminada na escuridão da noite.

Em “O canto do homem cotidiano”, 1977, a poesia de Ildásio Tavares estabelece uma lírica que quer se esquivar da realidade opressora do nosso tempo, sem, contudo, deixar de reconhecê-la, como faz no poema que dá título ao livro: Eu canto o homem vulgar, desconhecido/ Da imprensa, do sucesso, da evidência/ O herói da rotina,/ O rei do pijama,/ O magnata/ Do décimo terceiro mês,/ O play-boy das mariposas/ O imperador da contabilidade.” (...) “Mas que, na frustração cotidiana,/ Vai encontrando aos poucos sua glória/ Por isso eu canto a luta sem memória/ Desse homem que perde, e não se ufana/ De no rosário de derrotas várias/ E de omissões, e condições precárias/ Poder contar com uma só vitória/ Que não se exprime nas mentiras tantas/ Espirradas sem medo das gargantas/ Mas sim no que ele vence sem saber/ E não se orgulha, campeão na história/ Da eterna luta de sobreviver.
Este é o homem que encontramos nas ruas, nos bares, nas praças, nos bancos. Homens que jogam bola, capoeira, dama, dominó. São profissionais autônomos, empregados no comércio, na indústria e funcionários públicos. Todos estes, matéria prima para a lírica moderna, onde o poeta canta a própria existência em confronto à realidade opressora do nosso tempo. Perguntado sobre essa questão em uma entrevista recente que nos concedeu o poeta responde que sempre foi assim, contudo, em nossa época, o poeta sofre uma crise tão forte de identidade ante um sistema esmagador que, às vezes, cantar sabe a um grito no escuro.

Ciente que o tempo do artista difere do tempo do homem comum, o poeta abre mão das cronologias para privilegiar o seu tempo interior e mostra-nos uma alma que difere do mundo circunstante. Alheia às necessidades humanas, a poesia insiste em colocar o inexistente acima do existente. No poema “O meu tempo”, do qual trazemos aqui apenas um fragmento, ele nos mostra tal implicação com clareza:

Não existe hora certa, existe o meu relógio,
Lembrando sempre com seu tic-tac
Que há vida
Para ser vivida,
Que houve a vida
Que não se viveu.
Não importa que o rádio renitente ruja
São tal hora e tal minuto,
Hora oficial,
Afinal,
Que há de oficial em minha vida?

Se o que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada, como afiança Cora Coralina, então, povoada de momentos de uma história construída pelos trajetos que vem percorrendo, de análises teóricas dos autores, de poetas, de músicos, enfim, o cotidiano presente, da religiosidade, ilustrando o acadêmico, o conhecimento e as idéias, o cognitivo e o afetivo, o singular no plural, o universal no particular, com inventividade e ironia, a obra de Ildásio Tavares, pode-se dizer, tem as qualidades necessárias para, por certo, ser considerada uma obra importante.
Dessa forma, podemos afirmar que o substrato da sua poesia está numa determinada concepção onde o criador se constrói ao se relacionar com o mundo concreto, ao estabelecer relações e interações com outros homens, e que se apropria dos dados da cultura através das mediações simbólicas que estabelece e que se configura por sua totalidade, causando a estranheza necessária para tirar o leitor da sua inércia e levá-lo à reflexão.

Sobre o poder de criação de Ildásio Tavares, o crítico literário e historiador Nelson Werneck Sodré diz: É fácil compreender a alta qualidade do poeta. Em primeiro lugar pelo domínio da arte poética na linguagem de síntese que é sua essência. E ainda pela capacidade, nessa linguagem, praticar aquilo que Brecht ensinou, as diferentes maneiras de dizer a verdade.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Myriam Fraga: tons e entretons da sua poesia

texto que apresentei no encontro literário da Academia de Letras da Bahia

Tenho procurado ver o poeta à luz da sua própria estética, mas o que ocorre de maneira trivial, na imensa maioria das obras que nos chegam às mãos, é que não se vê estética alguma, senão um emaranhado de poemas disformes que nada dizem ao intelecto. A realidade é que tais obras não possuem conjunto ou idéia porque os autores caminham às apalpadelas, como perdidos, não sabem o que querem, tampouco o que têm a dizer.
É comum esses poetas apresentarem o tema dos seus poemas nos primeiros versos e depois se perderem nele. O resultado óbvio são livros e mais livros contendo emaranhados de poemas estética e discursivamente fragmentados, sem qualquer tipo de unidade que o perpasse em sua inteireza. Sendo impossível definir as obras desses poetas, as abandonamos ao jugo dos seus confrades, sempre dispostos aos elogios fáceis, algo tão próprio dos tempos atuais, fruto da carência de reais valores, onde a transgressão, segundo Frei Beto, deixou de ser exceção para tornar-se regra, o sistemático cedeu lugar ao fragmentário, a teoria ao experimental, tudo coreografado ao compasso dos jogos de linguagem.

Se toda obra deve possuir primeiramente uma intenção, então essa unidade a que nos referimos e que sentimos falta na obra da maioria dos poetas, deve estar presente. Assim se evitaria tanto juízo forçado ou torcido, tanta falta de correspondência entre a obra analisada e aquilo que se está a dizer dela, falácias de um compadrio desmedido e tão típico da ausência de crítica na atualidade.

Mas não há com o quê se preocupar, pois uma verdadeira obra literária possui o valor de resistir a reiteradas leituras, não é olvidada ou entedia, como não entedia um quadro de Rembrandt, um poema de Pessoa, uma escultura de Rodin. Antes ela permanece perene, infinda, na formidável companhia das coisas que nos são caras, pois muitas leituras se sucedem, centenas de obras secundárias deixam apenas breves rumores, quando deixam, mas a lembrança dos livros essenciais, essa continua fresca e persistente.

Encontramos essa unidade reclamada na extensa e variada obra de Myriam Fraga, poeta de amplas e humaníssimas medidas interiores, a procurar, pacientemente, a integração de diversos estímulos para conjugá-los em sua poesia que acolhe e tonaliza os elementos que se amalgamam em nossa identidade. Como em sua obra nada é acidental, portanto, cingida por critérios particulares, ao seu fazer poético comparecem além das demandas pessoais, existenciais, um arcabouço de elementos de cunho lendários, históricos e mitológicos, compondo um sistema de signos que dão unidade às suas obras, enfeixando-as com contornos épico e dramático, humano e sublime.

Desde seu primeiro livro, “Marinhas”, que data de 1964, até “Femina”, que é de 1996, são inúmeros estremecimentos, nove no total, apenas em língua portuguesa. E lá estão as paisagens da Bahia, os fatos e as figuras da sua história colonial, como em “Sesmaria”, 1969, onde percebemos no poema A cidade, esta bela descrição imagética de Salvador:

Foi plantada no mar
E entre corais se levanta.
O salitre é seu ar,
Sua coroa, sua trança
De salsugem,
Seu vestido de ametista,
Seu manto de sal
E musgo.

Já a mitologia grega, com seus deuses e heróis imortais, assunto de tal maneira fascinante, talvez por ter uma importância capital para o conhecimento ocidental, é um dos temas preferidos de Myriam Fraga. Um dos aspectos mais notáveis da mitologia grega, como afirma Mário da Gama Kury, é a atitude irreverente de seus criadores, reveladora da altivez dos gregos e de seu espírito igualitário, que os levaram a querer ombrear com os deuses em suas qualidades e em seus defeitos também. Por esses aspectos, a mitologia grega proporciona que a autora pretenda revestir-se de tal espírito para até mesmo subjugar os deuses, como está implícito no poema Anátema, inserido em “As purificações ou O sinal de Talião”, cujo dístico final diz:

Somos mais do que os deuses
Porque somos

Sabemos que por trás dos mitos, além das palavras e da ação, existe um conhecimento velado que dessa maneira é transmitido aos homens. Assim, a mitologia grega também comparece à obra de Myriam Fraga como elemento que vai auxiliá-la na decifração dos próprios mitos, nas demandas de cunho moral, como o da Esfinge, por exemplo, um ser com a cabeça de mulher e corpo de leoa, que em uma das suas variações contadas foi enviado a Tebas por Hera para punir o amor de Laio por Crísipo. No poema A esfinge, que faz parte do livro “O risco na pele”, 1979, a poeta concebe o monstro como um ser frágil. O que vale, em verdade, aqui, não é a sua imponência deste ser, mas os valores que representa. Como sabemos, após ter seu enigma decifrado por Édipo, a esfinge suicida-se, lançando-se do alto de um rochedo.

Também as demandas da alma feminina estão presentes na obra de Myriam Fraga, tudo ajustado por um censo estético que não dá fuga ao banal, ao superficial. Neste aspecto Myriam é preciosa, da família das Hilst, das Fontela, poetas que, no dizer de Henrique Wagner, conseguem sair de si para fazer literatura mesmo, não diário íntimo, monólogo interior. Em Ars poética, poema inaugural de “Femina”, um livro tão visceral quanto sinestésico, ela afirma: Poesia é coisa /de mulheres. E diz mais. Mostra em Possessão a face oculta dos poetas inspirados: O poema fez de mim/ O seu cavalo;/ Um arrepio no dorso,/ Um calafrio,/ Uma dança de espelhos/ E de espadas.

Por fim, vale lembrar que não podemos deixar de observar também que Myriam Fraga desenvolveu seu próprio dictum, seu modo pessoal de abordar as questões e ocorrências que lhe são caras. Versejando quase sempre em verso livre e breve, lança mão de uma coloquialidade revestida, variavelmente, por tonalidades instáveis e tensas, marca indelével de uma poeta plena, senhora de sua arte e dos seus limites, mas que, contudo, não se furta a explorá-los.

A terceira edição da revista Celuzlose

acabou de ficar disponível na internet

NESTA EDIÇÃO

Entrevista
Rodrigo Petronio

Literatura Brasileira Contemporânea
Alice Ruiz, Deborah Goldemberg, Edson Cruz, Elisa Andrade Buzzo, Lau Siqueira, Leonardo Gandolfi, Maiara Gouveia, Paulo Ferraz, Ruy Proença

Literatura sem Fronteiras
Jesús Aparicio González (Espanha); Luis Aguilar (México); Luis Armenta Malpica (México); Luís Serguilha (Portugal)

Caderno Crítico
Antropofagia e linguagem poética no século XXI - por Lau Siqueira
Um livro sem fim - por Reynaldo Jiménez

Poesia Visual
Celso Borges e Rodolfo Franco

Para acessá-la, basta clicar no link:
http://issuu.com/celuzlose/docs/celuzlose_03

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Dois poemas de Myriam Fraga

Hoje, sexta-feira, estarei na Academia de Letras da Bahia dizendo algumas coisas sobre a sua obra, também sobre a obra de Ildásio Tavares. O evento está marcado para começar às 17 horas. Sábado, 19 horas, na livraria Praia dos Livros, é o lançamento de "Diálogos - Panorama da nova poesia grapiúna". Porto da Barra, ao lado do Instituto Mauá.

A esfinge

Revesti-me de mistério
Por ser frágil,
Pois bem sei que decifrar-me
É destruir-me.
No fundo, não me importa
O enigma que proponho.
Por ser mulher e pássaro
E leoa,
Tendo forjado em aço
As minhas garras,
É que se espantam
E se apavoram.
Não me exalto.
Sei que virá o dia das respostas
E profetizo-me clara e desarmada.
E por saber que a morte
É a última chave,
Adivinho-me nas vítimas que estraçalho.


Pasifae e o touro

Neste pasto sem fim,
Neste campo de flores,
Navego teu silêncio como um barco,
E como um barco navegas
Meu silêncio.
Toda palavra entre nós
Carece de sentido.
Apenas nos olhamos,
Enquanto a pele estala
Como um fruto.
Sou delicada e cruel,
Tu és manso e assassino,
Mas não posso tocar-te
E não ouso perder-te.
Contemplar-se
E contemplar,
Este o nosso destino.
Inexorável, à nossa volta,
Constrói-se o labirinto.

Silvério Duque em alta

Após vencer o Prêmio Bahia de Todas as Letras, o poeta Silvério Duque emplaca mais uma: fora selecionado para publicação em livro de poesia patrocinado pela Canon do Brasil, uma iniciativa do Selo Editorial Fábrica de Livros, da Scortecci. A obra selecionada dessa vez foi o poema “O grito”, sobre um quadro de Edwar Munch.
Faz algum tempo tive acesso aos originais de um livro de Silvério, onde está inserido o poema premiado. Trata-se de um compêndio composto por poemas que dialogam com clássicos das artes plásticas, uma obra formidável, de impacto, que fará muito sucesso, tenho certeza, assim que for publicado, pois é de qualidade indiscutível.


Vida longa ao Silvério Duque!

O lançamento do livro está marcado para uma segunda-feira, dia 14 de dezembro, em São Paulo, às 19h, na Casa das Rosas, Av. Paulista, 37.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Micro entrevista com Ildásio Tavares + dois poemas inéditos do poeta de Itapuã

GF – Na lírica moderna o poeta passou a cantar a própria poesia em oposição à realidade opressora do nosso tempo. Como você analisa tal fato?
IT
– Sempre foi assim. Contudo, em nossa época, o poeta sofre uma crise tão forte de identidade ante um sistema esmagador que, às vezes, cantar sabe a um grito no escuro.

GF – E o que, na sua ótica, justifica esse grito?
IT
– A total necessidade de expressão do indivíduo amordaçado pelo sistema.

GF – Você já afirmou que acha mais difícil criar um poema com versos livres que um poema dentro da métrica, por quê?
IT
– Por que a métrica te dá um parâmetro, uma referência fixa, um modelo estrutural para você preencher. Para o verso livre, você tem que criar este modelo estrutural. Enquanto para um você tem uma métrica geral pré-estabelecida para o outro você tem que criar uma métrica particular para cada poema. Muitos poetas quebram a cara aí porque pensam que o verso livre é anárquico ou prosaico. Não, você pode fazer arte do caos, mas não fazer caos da arte. O verso é livre, não caótico ou frouxo.

Dois poemas inéditos do autor
As anotações que o poeta faz abaixo de cada um dos seus poemas marcam a data em que o mesmo foi concebido, o local e a quantidade de vezes que sofreu interferência.

Canção da Menina na Avenida

De pé, nos tristes passeios,
noite fria na avenida,
espera mas não espera,
andando ao rastro da luz.

Há de vir, pelo silêncio,
uma oferenda do acaso,
deslindando a escuridão,
prêmio da perseverança.

Quieta, a menina fenece
na frieza da calçada.
Enquanto espera, apascenta
sua veloz esperança.

18.VII.2008
Itapuã 4


Canção de mar e vento
pra Kabá e pra Infraero

Ela caminha na praia
e nada traz sobre a pele
que um vestido transparente
sobre a nudez de escultura

O vento venta o vestido
que cola ao corpo e arredonda;
denunciando-lhe as formas,
seus abismos, suas ondas.

Quero-me amarrar no mastro
do meu saveiro, depressa,
antes que o canto comece
e não possa resistir.

Serenai, meus verdes mares
ao embalo do meu canto.
Petrificai-me, Ó meus olhos,
pelo que vejo e não vejo.

12.XI.2008
Itapuã 3

Encontros Literários em Salvador

Estarei nesta sexta-feira, às 17 horas, na Academia de Letras da Bahia participando do Encontros Literários do ponto de cultura daquela casa, fazendo comentários sobre a obra de Ildásio Tavares e Myriam Fraga, dois dos maiores expoentes da literatura baiana no século XX. Trata-se de um programa de pós-graduação em literatura e diversidade cultural da UEFS - Universidade Estadual de Feira de Santana. A curadoria do encontro está a cargo do poeta Luis Antônio Cajazeira Ramos. No sábado estarei na Livraria Praia dos Livros, no Porto da Barra, às 19 horas, lançando “Diálogos – Panorama da Nova Poesia Grapiúna”. A curadoria desse evento é do poeta e filósofo Ivan Maia. Por isso nossas próximas postagens serão sobre Ildásio Tavares, Myriam Fraga e Diálogos. Espero que gostem!

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