terça-feira, 4 de agosto de 2009

Homenagem a Zeca de Magalhães

Neste 4 de agosto, meu amigo e poeta Zeca de Magalhães, completaria mais um ano de vida, 50 anos, não fosse a morte repentina, trágica e idiota. Um escorregão, do telhado de sua casa, onde subira para consertar uma goteira que insidia sobre sua biblioteca, a cabeça no chão e a saudade dos amigos. Foram dias de aflição aqueles, de orações, mas não teve jeito. Era carnaval e a tristeza imperava. É duro dizer algo mais porque o coração, a emoção não deixam. Melhor fez sua filha, Maíra.

Depois da morte, a poesia. Depois da poesia, a consciência:

“- as letras digitadas traduzem a frieza dessa madrugada enfumaçada / Chá e maconha despertam os resquícios poéticos, perdidos dentro de mim mesma / Depois da morte, a poesia / Depois da poesia, a consciência / Mastigo como um chiclete as palavras, apenas para satisfazer o meu vício de mascar a língua, para saborear os fonemas que um dia você recitou”.

Ele tinha muitos filhos, livros e sonhos, que já não mais cabiam nos seus bolsos e neste mundo. Não tinha mãos suficientes para segurar os tantos filhos. Conhecera o mundo muito depressa: através das palavras; dos olhos; da boca; dos ouvidos; do nariz e das finas e curtas pernas que perambularam pela estrada a fora neste país.
A sua necessidade era universal. O seu ritmo era emotivo. A sua palavra era a sua verdade – sua própria história. Fez de suas necessidades uma luta, deu ritmo às palavras, letra por letra (une) versalizou emoções.
Era constituído de verbo - duro de roer, de carne vermelha e sangue, de ossos descalcificados e músculos de expressões rígidas. Os olhos pequenos eram transparentes de sentimentos. O rosto marcado de rugas e cicatrizes adquiridas ao longo do tempo: dos amores; das angústias; das alegrias; das fomes e das loucuras. Da boca nervosa e inquieta saía uma voz grave e firme e palavras agudas. Gritava as dores de dentes e as dores do mundo.
A vida vivida é um elemento de suporte para a construção do argumento. Foi com a palavra que se tornou pai, poeta e professor. Foi com a palavra que conseguiu seu pão do dia-a-dia, seu prazer, seu ódio e seu amor. Difícil saber se era comandado pela palavra ou se a comandava. A linha que os separa é muito tênue. É uma relação dialética. Uma vida inteira dedicada à construção da própria. A sua busca era pela essência, as palavras eram instrumentos.
Com fé rezou e acendeu vela para o Fluminense e entes queridos. Com fé recitou nas praças, nos bares, becos, favelas e academias. Com fé casou-se. Com fé peregrinou pela BR com dor e poesia. Com fé em Santo Antônio casou-se de novo. Com fé vendia livros, nunca seus sonhos e verdades. Com fé tentou salvar seus livros e documentos amarelados, amassados e sujos, vítimas das goteiras de chuvas. Porém, não teve muito sucesso. Escorregou no telhado há muito molhado e caiu como o anjo que caiu do céu, bateu a cabeça e morreu.
Nem todos os punks, nem todos os beats, nem todos os marginais sobreviveram sustentando as mesmas vestes. Alguns mudaram de roupas, tomaram banho. Outros ficaram nus. Restaram poucos que se sustentaram sob as mesmas vestes e Zeca de Magalhães foi um deles. Em sua contradição e trajetória se (re) construía. Fez seus próprios livros, mesmo depois de ter dois publicados pelo Selo de Letras da Bahia, o “O nome do vento” (1998) e “A oeste do meu coração” (2004), não deixou de publicar seus livros feitos por ele mesmo, xerocados e vendidos de mão em mão. Ajudou ainda a publicar livros de muitos outros tantos poetas marginalizados no mundo da literatura. Porém, não fazia por caridade ou generosidade, mas por responsabilidade e filosofia.
Sempre andava depressa. Almoçava pão com mortadela e coca-cola, às vezes um sanduíche de pernil no comércio. Tomava um cafezinho na Praça da Piedade, muitas vezes a fiado. Fumava um cigarro Hollywood enquanto andava pelo centro histórico da cidade carregando livros, falando com todos sobre tudo, muito alto, gritando, gesticulando e sempre rápido. Competia com todos os transeuntes, sem os mesmos saberem, para ser o primeiro a entrar ou sair do elevador Lacerda, do bonde do plano inclinado, do ônibus, para atravessar a rua... A rotina era um jogo, matemático e lógico.
Tinha graduação na Praça da Cinelândia, mestrado na Praça da Piedade e doutorado na Praça da Sé. Faz agora pós-doutorado na ‘Praça do Céu da Poesia’. Para quem o conheceu sabe que Zeca, ou Kzé, ou Zequinha, foi para cada um e é para cada um, um. Uma lembrança, uma saudade, uma memória. Aqui expresso uma memória, desabafo uma saudade, re-construo para mim mesma um pai e um poeta. Uma história e um herói.
É com lágrimas nos olhos, com muita emoção, saudade, que tento exprimir minha maior verdade e sentimento: a poesia da qual eu nasci e cresci. É 4 de agosto de 2009 e o leão não está aqui para o felicitarmos. Sua matéria transmutou-se em palavras e nelas está vivo. Não tenho uma vela para acender... Acenderei um beck em sua homenagem: parabéns! Palmas ao poeta!

Maíra Castanheiro M. de Moraes
4 de agosto de 2009
Sítio Cidade das Estrelas – Muritiba/BA.
“Don’t let me down”...

Elegia para Charles Bukowski
Zeca de Magalhães

Ele dizia
que um poema
eram poetas
egoístas, amargurados
traduzidos
em loucos recados

Nove de março
eu tomava um porre
saudando outros
que tomastes em vida

Vomitei luas impossíveis
Fui de tudo
e fiquei sem nada
A madrugada crescia
na rua teus passos
desapareciam de nós

Vários porres
pelo porre
enquanto Bukowski
morre

Um comentário:

Nalva Kuhn disse...

Perdoe-me um comentário tão tardio, quase um ano depois... Só hoje descobri e li essa maravilhosa crônica para Zeca de Magalhâes, poeta que infelizmente não conheci em vida, e sim através da poesia de Miguel Carneiro.

Maravilhosas palavras para alguém que por certo foi igualmente maravilhoso.

Parabéns!