domingo, 30 de agosto de 2009

Viajando com Carlos Verçosa

Estive ontem, sábado, em Salvador com Carlos Verçosa, autor de “Oku, viajando com Bashô”, vigoroso e estupendo rastreamento do haicai brasileiro publicado em 1995. E no sábado mesmo retornei a Itabuna, pois fui exclusivamente para tratar da recuperação da obra do excelente Abel Pereira, um haicaísta baiano, de Ilhéus, que confiou ao Verçosa seu último trabalho, ainda inédito, que publicaremos pela Editus.
Foi um dia primoroso. Nos encontramos ao final da manhã, na biblioteca do ICBA – Instituto Cultural Brasil Alemanha, onde tratamos de nos apresentar devidamente. Verçosa estava meio desconfiado da nossa capacidade de fazer jus à obra do poeta, desconfiança desfeita assim que conheceu nossos trabalhos de recuperação das obras de outros autores igualmente importantes para a minha região.
Além do trabalho com a obra de Abel Pereira, firmamos acordo para a recuperação da obra de Gil Nunesmaia, uma antologia do haicai na Bahia e o mais interessante, a segunda edição de Oku.
Saí do encontro, que durou até as 21 horas, com a melhor das impressões e com uma alegria muito grande. De Verçosa trouxe seu trabalho de fotohaiga, “Música Urbana”, 2001, feito em parceria com o fotógrafo Aristides Alves, e muito mais informação para o meu entendimento sobre haicai. No mais é aguardar os trabalhos que, na medida do possível, serão disponibilizados a todos.
Abaixo, fotos e haicais de “Música Urbana”.
entardecer
o sol mergulha
mas volta

pipa no céu
deus também
é menino

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Dois anos sem Bruno Tolentino, dois poemas inspirados na obra do mestre

Sempre que volto à obra de Bruno Tolentino (1940 – 2007), surge em mim uma questão relacionada ao que mais se pode dizer sobre ela. É evidente que, pela sua universalidade, pode ser vista sob diversos ângulos, uns mais originais, outros nem tanto. Entretanto, sem dúvida alguma, quando penso nesta questão, um exemplo muito claro me assalta: seu legado para as novas gerações, sua consciência literária, seu esmero e integridade intelectual, sem necessitar recorrer, como ele mesmo diz “ao balcão das conveniências e cambalachos”. Nesse sentido, Antônio Houaiss, escrevendo sobre OS DEUSES DE HOJE, refere-se a Bruno Tolentino como "o intérprete destes tempos que não busca o compadrio dos expertos e artimanhosos..."
É mesmo de se admirar que um poeta maldito, com a “língua entortada pelo vício da ironia, quando não do sarcasmo”, segundo ele mesmo, cuja obra dificilmente será devidamente lida e digerida nos próximos dez anos, tenha vencido, entre outros, três vezes o maior prêmio literário brasileiro, o Jabuti, prova inconteste do poder da obra de um autor que sempre condenou os bairrismos, as corriolas, legando-nos tanto uma obra grandiosa quanto seu exemplo maior: a honestidade intelectual. Talvez seja por isso mesmo que tantos ótimos jovens poetas, atentos ao valor das coisas, estejam “pagando” seus tributos à obra e ao pensamento de Bruno Tolentino.

Bruno Tolentino no caminho de Beatriz
Astier Basílio (PB)

Aos teus pés se apresenta o último círculo.
A capela em que entram é uma neblina.
Há rumores com túnicas, onde os livros
são escritos à mão. O chão que pisas
não permite sandálias, nem recibos.
Nenhuma réplica, ali não há galeria
as imagens são seu espelho e mito,
são vivos os vitrais nesta Sistina
onde a idéia se faz em pedra e signo.
Entre incensos os pés de Deus caminham
como um vento a chamar cada escolhido.
Uma porta se sabe, outra adivinha-se.
Cumprimentas os anjos em sua língua.
O teu nome é chamado. E o resto é abismo.


A BALADA DA MEDUSA
Silvério Duque (BA)

de um Trompe L’œil à Tolentino
sob a forma de um possível soneto inglês


ao Jessé de Almeida Primo

Nosso amor, como tudo neste mundo,
é um risco, um faz-de-conta... uma impressão
sem sentido, uma tola profusão
do imperfeito e do imprevisto, do fundo
escuro e sem sentido do desejo.
Nossa dor como tudo nesta vida
é um desespero – pedra confundida
com a ânsia alucinada do teu beijo – ,
uma alucinação – olhar desfeito
ante à sombra, à luz, à escuridão –
e tantos mais contrários desta união
do feito, do perfeito e do refeito:
e, assim, se somam tudo quanto é triste
sem saber qual de nós menos existe.

Sugestão de leitura externa:
“Bruno Tolentino e a literatura ocidental”, de Pedro Sette Câmara: http://oindividuo.com/2008/06/30/bruno-tolentino-e-a-literatura-ocidental/

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Um poema de Victor Hugo

Devido ao grande poder da mídia muitos de nós conhecemos a canção “Amor pra recomeçar”, composição de Frejat (ex- Barão Vermelho), vastamente veiculada em novela, comerciais e rádios por todo Brasil. Mas o que pouca gente sabe é que a letra de tal canção é influenciada diretamente por um belíssimo poema de Victor Hugo (1802 – 1885), poeta e romancista francês, autor também do clássico “Os miseráveis”. O que me leva à reflexão, neste caso, é o desrespeito à obra que influenciou diretamente a letra canção (e até mais do que isso), pois sendo a música, hoje, mais popular que a poesia, servindo-se dessa em inúmeros casos, deveria, ao menos, revelar ao público, sempre, em qual fonte foi beber.

Poema

Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.
E que esquecendo, não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
Mas se for, saiba ser sem desesperar.

Desejo também que tenha amigos,
Que mesmo maus e inconseqüentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Você possa confiar sem duvidar.
E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exata para que, algumas vezes,
Você se interpele a respeito
De suas próprias certezas.
E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
Para que você não se sinta demasiado seguro.

Desejo depois que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.

Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Você sirva de exemplo aos outros.

Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais,
E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer
E que sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.

Desejo por sinal que você seja triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que você descubra,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.

Desejo ainda que você afague um gato,
Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, você se sentirá bem por nada.

Desejo também que você plante uma semente,
Por mais minúscula que seja,
E acompanhe o seu crescimento,
Para que você saiba de quantas
Muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele
Na sua frente e diga "Isso é meu",
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.

Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
Por ele e por você,
Mas que se morrer, você possa chorar
Sem se lamentar e sofrer sem se culpar.

Desejo por fim que você sendo homem,
Tenha uma boa mulher,
E que sendo mulher,
Tenha um bom homem
E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes,
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a te desejar.


terça-feira, 25 de agosto de 2009

Morre o poeta Anibal Beça

Morreu na manhã de hoje (25), vítima de complicações renais e infecção generalizada decorrentes do diabetes, o poeta, compositor, teatrólogo e jornalista amazonense Anibal Beça, de 62 anos.
De acordo com o filho do escritor, Ricardo Beça, que também é médico e acompanhou o pai na luta contra o diabetes, Aníbal foi internado por conta de complicações renais, que culminaram em uma infecção generalizada. "Todos os procedimentos médicos foram realizados, mas infelizmente ele não resistiu", disse. Foi desse modo que recebi a notícia da morte do poeta, através do portal amazônia, da globo.com.
Poeta tão bom, homem tão humano, por isso mesmo é que trata-se de uma tremenda perda, que nos entristece, e sobre a qual, neste momento, temos pouca, quase nenhuma condição de refletir. Faço minha homenagem ao Anibal publicando um artigo (que ele gostava muito) que escrevi sobre os seus haicais.
Vá com Deus poeta, leva consigo o silêncio das borboletas...
Entrevista de Anibal Beça, concedida a Rodrigo Leão: http://www.geocities.com/SoHo/Lofts/1418/aniball.htm

Anibal Beça: tropicalmente oriental
Gustavo Felicíssimo

Há poucos dias recebi alguns livros do poeta amazonense Anibal Beça. Entre eles destaco “Folhas da Selva”, o único que pude ler até o momento, um livro todo constituído por formas de origem japonesa, onde se inserem inúmeros haicais, forma poética pela qual tenho especial interesse e venho estudando faz alguns anos, mais detalhadamente há pouco mais de seis meses. O fruto desse nosso estudo será a publicação de um livro-ensaio sobre o haicai na Bahia, previsto para vir a público ainda neste ano de 2009.
Mas nosso interesse aqui é o livro de Anibal. “Folhas da Selva”, no primeiro momento, nos impressionou pela quantidade de páginas, 358 no total, divididas em doze partes, e o que percebemos é uma poesia vibrante e equilibrada, totalmente alinhada ao cânone japonês, onde o poeta imprime imagens impressionantes, fruto de uma percepção e técnica aguçadas pelo total respeito e amor à natureza, berço do haicai. O poeta adota a espontaneidade em sua poesia, o karumi, aspecto cujo expediente resulta em fazer parecer que não há arte em sua arte, apesar desse recurso ser conseguido apenas ao custo de muito talento, extrema elaboração e anos de prática.
Como o haicai está intimamente ligado à vivência pessoal do poeta, nada mais natural que a natureza amazônica permeie recorrentemente todo o livro. E como apenas desse modo poderia ser, Anibal canta o que lhe é tão caro:

Vento de candura –
vai no vôo leve a lã
da sumaumeira.

ou ainda

De repente folhas
caminham em fila na trilha –
formigas tucandeiras.

“Folhas da Selva” ainda é composto por outras formas, uma delas é a renga, ainda pouco conhecida no Brasil. A estudiosa Rosa Clement define a renga como uma “forma de poesia que realça a arte da transição ao encadear, respectivamente, estrofes sazonais de três e dois versos escritos por dois ou mais autores”. Anibal Beça quebra essa regra ao compor uma renga solo: “Renga-solo de verão”, capítulo composto por sete poemas. Vejamos um deles, de forte apelo social, o segundo da série:

Sol do meio-dia –
o caramujo se abriga
sem pressa na concha.

Noite e dia ao relento
sob a marquise os sem-teto.

Anibal ainda cultiva o haibun, haicai precedido por prosa poética, destacada por José Marins como “um texto breve, enxuto, sem rebuscamentos, ao qual se acrescenta o haicai ou os haicais, no máximo três”; também o senryu, que nada mais é que um haicai de contornos cômicos, irônicos ou satíricos, trata do cotidiano, dos hábitos e atribulações do homem; poetrix, uma forma brasileira não original, totalmente devedora ao haicai, e que ainda não compreendemos; e ainda uma forma de haicai aclimatado ao modo de Guilherme de Almeida, um dos principais divulgadores do haicai no Brasil. Nesse modo de compor, o primeiro verso rima com o terceiro e ainda há uma rima interna entre a segunda e sétima sílabas do segundo verso, como neste:

Quando o gongo bate
é hora que aflora a espora
do galo em combate.

Por fim, resta-nos discorrer sobre o que no livro nos chamou mais a atenção, as excelentes rengas compostas a quatro mãos entre Anibal Beça e José Félix, poeta angolano radicado em Portugal. Falamos de “Chá das quatro”, compostas por “Palhas de outono”, “Galhos de inverno”, “Talos da primavera” e “Ramas de verão”, respectivamente, enfeixadas, cada uma, por 36 poemas, conforme proposto por Basho, em homenagem aos 36 poetas imortais do Japão.
Também chamadas de kasen, a poesia dos sábios, é marcada por uma sutil transição dos poetas, alternando a construção das estrofes. Um dos poetas faz o haicai 5/7/5 sílabas e o outro o seu link, o complemento, com 7/7 sílabas. Na transição, os poetas se referem ao link imediatamente anterior, o terceiro verso da primeira estrofe. Uma vez que um aspecto de certo tema foi usado, o poeta seguinte muda para outro aspecto desse mesmo assunto. É tudo tão sutil que impressiona. No poema a seguir, a primeira estrofe é de Anibal Beça e a segunda de José Félix:

Silêncio no lago –
o vento frio vai levando
o que voa leve.

A pétala de jasmim
desliza na borla da água.

E neste os poetas se invertem na construção:

Indo para a igreja
a beata olha para o céu –
Cruzeiro do Sul.

Na madrugada de outono
sons de sinos e cigarras.

Ficamos nós, que já conhecíamos alguma coisa da poesia de Anibal Beça mais alinhada ao cânone ocidental, maravilhados por conhecer essa sua outra face, a de haijin. Entretanto, observamos apenas que, para um livro ainda mais acessível, um glossário de termos e expressões amazonenses poderia vir a somar e ser muito útil à obra e ao leitor, ausência que não chega a prejudicar o belíssimo “Folhas da Selva”.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Encontros na Academia de Letras da Bahia

Acontece a partir de setembro, em uma atividade do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia, sob a coordenação do poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos, um programa de bate-papos com escritores, com leitura e discussão de textos.
Os encontros serão realizados no auditório da ALB, de setembro de 2009 a dezembro de 2011, sempre na primeira sexta-feira de cada mês, das 17h às 19h, alternando poesia e ficção, com dois escritores convidados. Haverá ainda dois leitores que irão comentar os textos apresentados, formular perguntas aos dois autores e, assim, iniciar o debate, com a participação ativa do público presente.

Participarei do evento comentando a obra do meu amigo e mestre Ildásio Tavares, o que para mim é uma honra. Minha idéia, a princípio, é apresentar um texto sobre seu mais novo livro, “Flores do Caos”, 2009, Editora Labirinto, Portugal.

Conheçam a programação para 2009:

–4 de setembro, Hélio Pólvora e Mayrant Gallo (ficção), comentários de Antônia Herrera e Gerana Damulakis

–2 de outubro, Ruy Espinheira Filho e Maria Lúcia Martins (poesia), comentários de Lígia Teles e Valdomiro Santana

–6 de novembro, Luís Henrique Dias Tavares e Adelice Souza (ficção), comentários de Cássia Lopes e João Eurico Matta

–4 de dezembro, Myriam Fraga e Ildásio Tavares, (poesia), comentários de Evelina Hoisel e Gustavo Felicíssimo

sábado, 22 de agosto de 2009

Os becos de Jorge Araújo

fragmento de um estudo que fizemos sobre a obra do autor


A arte, como profetizou Antonin Artaud, "não é a reflexão da vida, mas a vida é a reflexão de um princípio transcendente com o qual a arte nos volta a por em contato". Em alguns poetas, o espírito rebelde os identifica sempre com as forças libertárias, não canônicas, e estão em profunda sintonia com o que nos disse Artaud, como um Maiakovski, por exemplo. E esta força poderosa, como um turbilhão de energias, assolará eternamente a opressão onde quer que ela esteja. Dessa energia é composto o livro “Os Becos do Homem”, de Jorge Araújo, "uma experiência de poesia existencialista, de discussão do humano numa situação de confronto na sociedade contemporânea", afirma o próprio autor.
Jorge Araújo (1947) é baiano de Baixa Grande e Ilheense por adoção. Mestre e Doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ é ensaísta premiado diversas vezes. Publicou diversos livros, entre eles “Pegadas na praia: a obra de Anchieta em suas relações” (2003), “Dionísio & Cia na moqueca de dendê: desejo, revolução e prazer na obra de Jorge Amado” (2003), o belíssimo “Do penhor à pena: estudos do mito de Don Juan, desdobramentos e equivalências” (2005) e “Floração de Imaginários: O romance baiano no Século XX” (2008).
Em “Os Becos do Homem”, seu livro de estréia na poesia, Jorge Araújo transita pelas redondilhas, pelo haicai, pelo verso livre e pela metapoesia. Esse livro foi gestado durante todo um período de ditadura no Brasil (desde o início dos anos 1970) e publicado em 1982, onde o poeta nos oferece "uma poesia densa, reflexiva, engajada, pois se funda em duas direções políticas, a da inutilidade de certa ordem e a da incapacidade dos homens dessa ordem", como afirma Antônio Houaiss no prefácio do livro.
Jorge Araújo possui um dos instrumentos essenciais para o poeta na modernidade: dizer densamente aquilo que pretende, trafegando pelo indizível, mas sabendo sempre o que dizer, como neste fragmento de “Acalanto”:

Os sentimentos do homem
os seres do homem
os pesares do homem
lançaram-se no abismo
do consumo das coisas
fora de sua alma

O que o homem hoje diz
não corresponde ao eco
de sua destinação

(...)
Só uma eiva salva o homem hoje
da condenação de si a si mesmo
porque Herodes de seu menino
avatar de sua história

Ao homem só resta reencontrar-se
nas retinas do mundo.

Fulgurante, seu verso é valioso, quase inesgotável, e convida o leitor a voltar inúmeras vezes, pois é feito de inquietação; poesia que consegue estabelecer uma ligação orgânica de suas vivências e crenças pessoais com os anseios coletivos de grande complexidade. Como afirma José Maurício Gomes de Almeida em artigo publicado no jornal O GLOBO, em Outubro de 1982, "a poesia de Jorge Araújo assume integralmente esta marca suja da vida". Acompanhemos o poema “Presságio”:

Tempo haverá em que o medo
será artigo de quinta categoria
nas prateleiras do esquecimento

Então nos despediremos
da exatamência deste vil
relógio do tempo
a que nos vendemos hoje

e cruzaremos fartos de coragens
a fronteira doida do imenso vale
de nossa solidão
no exercício enfim da liberdade.

O poema retrata a ânsia do autor à espera de um tempo em que os grilhões da ditadura seriam quebrados, pois não havia grandes motivos para se animar com os rumos da abertura política no país. Era um tempo de ânsia e de expectativa retratado no poema “Leitura de Jornal”, o poema de Jorge que melhor se adequou ao nosso gosto.

Inquieto-me hoje
assim como ontem
e amanhã de igual forma
por essa multidão de sombras nos assuntos
dos jornais
essa procissão de sonhos nos assuntos
dos jornais
sem pouso nem porto certo

E se me arruíno e me intimido
e se me dou violenta surra moral
devo estourar os miolos
jogar-me da ponte sobre o mar
antes de virar a folha
dos assuntos dos jornais?

De mal a mal
na última página do primeiro caderno
dos assuntos dos jornais
desta terça-feira dia tal do ano tal
encontro algumas alternativas (enfim!)
o Flamengo tem tudo para sagrar-se
campeão das nossas sempiternas esperanças.

Lá se vão 23 anos do fim da ditadura, durante esse tempo, Jorge Araújo acabou se tornando um ensaísta e crítico dos mais premiados do país, entretanto, “Os Becos do Homem”, por sua vez, não perde o frescor, pois o inimigo está em toda parte, porém oculto; domina o capital, os grandes conglomerados empresariais e a informação, manipulando-a de acordo com as suas conveniências.
Mas o poeta não é apenas um escritor engajado, ele pensa a própria poesia a partir dos instrumentos que possui e assim questiona a sua condição ontológica em um espaço que privilegia cada vez mais o valor utilitário das coisas. Por isso escolhemos o metapoema “Querido Lavoisier” para rematar com chave de ouro as nossas considerações:

Já em poesia
nada se transforma
tudo se cria

o nada transforma
o tudo em cria

na forma do poema
tudo há e nada havia

(no sobre
tudo se lia
no sabre nada se via)

mas transformar a poesia
- é tudo e nada, sabia?

Poesia de nada servia?
Poesia em tudo, seria?

Formas de tudo sorvia
Transe do nada sumia

- Lavoisier, sem folia
a poesia, noite e dia
seduz a melancolia.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A dança dos sete véus

Motivado pelos poemas com títulos homônimos, “Salomé”, um de Myriam Fraga, outro de Plínio de Almeida, postados anteriormente neste blog, resolvi empreender uma pesquisa sobre a Dança dos Sete Véus, com a qual Salomé teria “enfeitiçado” Herodes antes de pedir-lhe a cabeça de João Batista como prêmio.
Descobri que há várias versões para a origem da Dança dos Sete Véus. Daquelas que encontrei, a mais bela é, sem dúvida, a que tem origem em uma antiga lenda babilônica, contada por Diane Ferguson, com tradução de Gian Celli, que diz que a deusa Ishtar para recuperar Tammuz, seu marido assassinado, desce ao mundo subterrâneo a fim de resgatá-lo do reino de sua irmã, Erishkigal. Ao descer, Ishtar passa por sete portais e em cada um deles deixa uma de suas vestes que lhe conferem poder, até chegar nua e indefesa como todos os mortais. Ela consegue seu intento, mas paga alto preço: seu marido, deveria passar metade do ano em liberdade, mas a outra metade deveria retornar para viver no submundo, com Erishkigal. Foi assim que Tammuz passou a ser dividido entre as duas irmãs, uma, a Rainha do Céu, a outra, a Rainha do Submundo. Quando estava com Ishtar, na Terra, a Deusa ficava feliz e a natureza e a humanidade floresciam, mas quando ele retornava ao submundo, a consternação de Ishtar fazia com que toda vida fenecesse.
Na dança, para cada portal atravessado pela deusa, a bailarina despe-se de um véu, para cada um, executa um movimento diferente, sugerindo um sentimento ou uma expressão variada. Após empreender a pesquisa, acabei cometendo o poema abaixo.

A DANÇA DOS SETE VÉUS

Toda essa vida é como a vela
e toda vela é como a luz
da lua clara sob um céu
cheio de estrelas, andaluz;

em sua essência e formosura
toda essa vida é uma ventura,

feito a dança dos sete véus
e a dançarina seminua
entre os portais do próprio céu:

tal qual a vela a dança encanta
ao mostrar a sua face santa.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Duas vezes Salomé

Nos poemas abaixo, Myriam Fraga e Plínio de Almeida, poetas de origem baiana, revisitam, cada um a seu modo, a passagem bíblica na qual Salomé, uma linda princesa, enteada do Rei Heródes, cujo amor pelo apóstolo João Batista não era correspondido, “enfeitiça” o Rei com a Dança dos sete Véus. Heródes, enlouquecido de paixão, diz a ela que peça o que quiser. Salomé, influenciada por sua mãe, exigiu a cabeça do profeta numa bandeja de prata. Vendo a cabeça de João Batista na bandeja, horrorizada, e sinceramente arrependida, Salomé diz que, finalmente, ele havia olhado para ela.

SALOMÉ
Myriam Fraga

Tantos anos depois
Não faz nenhum sentido,
Estória tão antiga...

— Eu te amo, eu disse,
Em meu vestido azul
Que um girassol floria.

— Eu também. E teu corpo
Encostado
Ao meu corpo, tremia.

Embriagada eu dançava,
Dilacerando os vestidos.

A interdição entre nós
Crescia como um bicho,
Serpente de pele lisa
E anéis coloridos.

Tantos anos depois
Ainda sonho com isso,
Um brilho de lâmina
E o sangue
A escorrer no ladrilho.

O tempo todo e eu sabia
Que, arrancados os véus,
Restaria o suplício. Restariam
As feridas. Um corpo ausente
E a lenda, de um remoto país
Onde habitei um dia.

Ó funesta tentação
De voltar àquela tarde
Em que dançando selvagem
Ao som de flautas,
Congelei a tua imagem
No fundo das retinas.

O topázio do sol
Ardia como brasa
E eu lavei as mãos
E limpei as sandálias.
No espelho, meu rosto,
Tinha a carne das estátuas.

Na espessura do silêncio,
Um gotejar de mágoa.
Na bandeja, os despojos,
Ainda tintos de vinho,
A cabeleira e os olhos
Acesos como círios.

Tantos anos depois
Não faz mesmo sentido
Mas guardo ainda o espelho
Onde espreito minha sorte,

Onde dia e noite espreito
A sombra que flutua
E se cola
Como máscara, em meu rosto,
Como chaga no coração,
Bem no peito onde o tempo
Enfiou sua adaga.

E danço como nunca mais
Dancei. O rei agora dorme,
Dourado, em seu sarcófago.

Mas ainda tenho os véus,
A bandeja e a espada.

Em: Femina, Fundação Casa de Jorge Amado, 1996.


SALOMÉ
Plínio de Almeida

Nessa tua obsessão pelo Batista,
Sentes nas veias do teu corpo em flor,
Vibrar uma vontade ardente, mista
De uma ânsia de posse e de pavor!

Que importa pelos teus fique malvista
A rubra incandescência desse amor?
Salomé, sensual, tu és realista:
Queres é possuir o Pregador.

Os beijos de São João serão troféus!...
Pensas nisto, e divina, esguia e leve,
Voas na dança sutil dos sete véus...

Mas esse amor se enflora na ironia,
Ensangüentado que ninguém descreve:
Teu beijo quente em boca morta e fria...

Em: Obra Reunida, Editus, 2009.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Outra crônica – Gustavo Felicíssimo

Quando jovem não dava um único centavo por um poema. Melhor dizendo, não conhecia a poesia. Sendo assim, como poderia dar algo por ela? Minha mãe, apesar de se esforçar muito para criar a mim e minhas irmãs, não possuía intimidade com livros. Já na Bahia, muitos anos após ter pisado tão benditas terras, uma namorada, jornalista com vasta leitura, conquistou-me para o mundo das letras, em princípio, oferecendo-me livros pouco complexos, romances históricos geralmente, como “A incrível e fascinante história do Capitão Mouro”, de Georges Bourdoukan.
Com o tempo, obviamente, minhas leituras foram ficando mais sofisticadas e mesmo sem nunca ter lido um único livro de poesia começava a rabiscar alguns versos, modestos versos, como só assim poderiam ser naquele momento. Foi quando aquela namorada presenteou-me um caderninho amarelo, de capa dura, que tenho até hoje guardado, sugerindo que ali anotasse tudo que viesse a escrever, pois desse modo, afirmava com razão, poderíamos perceber se haveria alguma evolução ao longo do tempo. Foi o que fiz. Depois daquele caderninho vieram outros, uns dez, todos conservados até hoje. No primeiro deles, nostalgicamente, leio os seguintes versos, inocentes, claro, mas que dão conta exata da dimensão que a poesia assumiria em minha existência: “Pedaços da minha vida/ Parte do meu caminho/ Meu caderno/ Meu mundo/ Páginas onde sofro/ Páginas onde sonho.”
No correr dos dias, como a brisa leve aliviando o mormaço, cheguei, agora sem a companhia da antiga namorada, aos grandes clássicos de Machado de Assis, Kafka, Dostoiévski, Maupassant, Tchekhov, García Marquéz, Cortázar, Borges, e aos romances brasileiros de autores nordestinos como Graciliano Ramos, Raquel de Queiróz, Adonias Filho, Herberto Sales, João Ubaldo Ribeiro, Jorge Amado, José Lins do Rego e o mineiro Guimarães Rosa, o melhor da ficção romanesca brasileira em minha opinião.
Somente após essas leituras foi que comecei a ler poesia, mas de maneira aleatória. Li muita coisa sem nenhuma sistematização. Nessa fase passei por uma infinidade de autores lusófonos, mas desconfio se apreendi alguma coisa.
Só então, após uma troca de correspondência com o poeta Ruy Espinheira Filho, é que fui buscar conhecimento teórico. Fiz uma oficina de Literatura de Cordel com Jotacê Freitas, de quem me tornei amigo e logo em seguida participei da oficina de criação literária de Maria da Conceição Paranhos, onde, enfim, começaria a ser forjada pra valer a minha consciência literária, onde aconteceu meu primeiro contato com Homero, Virgílio, Ovídio, Dante, Camões, Shakespeare e tantos clássicos, além de poetas contemporâneos de diversas nacionalidades e, sobretudo, com as obras dos poetas baianos, principalmente os da Geração 60, mas não apenas.
Fundei, juntamente com outros escritores, o tablóide literário SOPA, quando passei a conhecer melhor a poesia contemporânea da Bahia. Organizei saraus, me embriaguei em infindáveis noites à mesa dos bares soteropolitanos na companhia dos amigos, discutindo poesia. Cada um com sua verdade. Fizemos tanta coisa... Vimos abrir e fechar o sebo do João Filho, onde, já com outra turma, me reunia aos sábados para longas horas de uma conversa muito agradável e quente. Ali fizemos nascer a revista POESIA & AFINS que, infelizmente, não passou da primeira edição.
De lá pra cá algum tempo decorreu sob nosso olhar, amigos ficaram, mas não se perderam na memória, outros seguiram conosco, com o peito aberto, a palavra terna, enquanto mudamos de ares e fizemos novos amigos, poetas, como sempre, aos quais damos as mãos e seguimos a mesma vereda, em unidade, contra a falta de valores que, indiscriminadamente, regurgita sua anorexia sobre nós.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Crônica - Alberto da Cunha Melo

Vindo a pé, da rua do Imperador para o edifício onde moro, na Av. Manoel Borba, todo um poema elaborei do princípio, meio ao fim. E pensei registrá-lo no papel quando chegasse em casa. No meio do caminho, algo, talvez mais importante do que esse poema só mentalizado, o dissolveu no ar. Isso tem acontecido frequentemente: vivo escrevendo, nos últimos meses, muitos poemas no ar. Como desculpa amarela de um poeta mediano, com um nível apenas suportável de leitura, eu poderia dizer que esses poemas, dissolvidos no ar, talvez fossem minhas únicas obras primas. Como sabem, não estou falando em poemas que a gente escreve, numa mesa, e perde depois entre papéis jogados no lixo. Estou falando naqueles poemas vivos, que a gente escreve na mente, andando, andando, pelas ruas do Recife, por falta de dinheiro e de método e que a realidade, mais forte do que eles, com um simples sopro, os dissolve no ar. Ah, poemas que não conseguiram chegar em casa, como os vivi, como os amo assim, só com sua lembrança, uma palavra; às vezes, nem isso: só um sentimento indefinido. A todos vocês, poemas não escritos, eu os saúdo no dia de hoje, um dia bom, muito bom para mim: dez por cento de agonia a menos do que o dia de ontem.

Recife, 7/11/83

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Irmandade da Boa Morte: Poesia e Fé

Com informações do blog da jornalista Alzira Costa e do jornal Correio da Bahia

A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte surgiu nas senzalas, há cerca de 150 anos e tinha como objetivo alforriar negros ou dar-lhes fuga.
Com o fim da escravidão, as senhoras que participavam do movimento se aproximaram da Igreja, fundando a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. A festa é comemorada em Cachoeira, cidade histórica do recôncavo baiano e monumento nacional, no período de 13 a 15 de agosto.
A festa de Nossa Senhora da Boa Morte é considerada a mais importante manifestação sincrética religiosa da Bahia, une rituais católicos com elementos do culto afro-brasileiro. Os tradicionais festejos da Irmandade, composta por mulheres afrodescendentes com idade acima de quarenta anos, começa no dia 13, com o ritual do traslado do esquife de Nossa Senhora, às 18 horas, com saída da Capela d'Ajuda, com destino à capela da Irmandade, na Rua 13 de Maio, onde haverá uma celebração religiosa em memória das falecidas. Nesse dia, as irmãs vestem-se de branco em sinal de luto. Em seguida, participam da Ceia Branca, com familiares e convidados. A ceia é composta por alimentos à base de peixes, frutos do mar, pão e vinho. Os pratos não levam azeite de dendê, por isso esse nome.
No dia 14, segundo dia da festa, as integrantes da Irmandade usam a beca com saia preta plissada, blusa branca bordada, cobrem os cabelos com um lenço branco bordado, chamado biôco. Elas usam também um chale de veludo que possui duas faces: uma preta e outra vermelha. Durante o ritual da procissão, que simboliza o enterro de Nossa Senhora, as irmãs usam o chale com a face preta à mostra e percorrem as principais ruas do centro histórico de Cachoeira, seguida de filarmônicas que tocam marchas fúnebres.
No dia 15, o último dia das celebrações públicas, acontece a grande procissão da Assunção de Nossa Senhora. O cortejo sai da igreja da irmandade após a missa, marcada para as 8 horas. Nesse dia, considerado o ponto alto da programação, as integrantes da Irmandade vestem a beca, usam, jóias e deixam à mostra as contas de seus orixás, além de deixar a face vermelha do xale exposta. Essa manifestação é marcada pelas cores das flores que decoram o andor de Nossa Senhora da Glória, foguetório e muita alegria. Para as irmãs é o dia da Ressurreição de Nossa Senhora e por isso é festejado com muita alegria. Após a procissão, as irmãs trocam o traje de gala por saias coloridas e blusa branca. Todas participam do samba de roda em homenagem à Nossa Senhora. A irmandade oferece um farto banquete com feijoada, assados e saladas.

Estive nesta festa participando de um recital, se não me engano, em 2004, atendendo ao convite do poeta e amigo João de Moraes Filho. Foi para mim um grande acontecimento. Saí de Cachoeira acompanhado por fortes impressões. Meu corpo não calava, minha mente não calava, era um turbilhão que apenas cessou, parcialmente, quando parei para escrever alguns poemas, todos eles marcados pelas fortes imagens que ainda carrego daquele local.
Esses poemas, um tempo depois, foram traduzidos para o francês e publicados na terra de Rimbaud por Pedro Vianna, graças à indicação do meu querido amigo, Miguel Carneiro. São cinco poemas no total, dos quais trago três para que conheçam.

Poemas à beira do rio
Poèmes au bord de la rivière

II
Sentada à margem do rio imenso
imersa em suas lembranças
a negra de cabelos brancos,
Senhora dos segredos dos cântaros,
ainda é uma criança:
brinca de roda e cabra-cega
enquanto ignora o tempo

II
Assise au bord de la rivière immense
immergée dans sa souvenance
la femme noire aux cheveux blancs,
La Dame aux arcanes des cruches,
est encore une enfant:
elle joue à colin-maillard elle danse la ronde
pendant qu'elle ignore le temps

III
Vejo o rio cortando a terra
e ao longe o carreiro ligeiro
apressado bate o mancá,
fuma um Paraguassu
e vê a cidade no rio;
tão linda em dia de festa.
Enigmática para os forasteiros
a urbe e o rio navegam
no espaço do tempo mistério,
num périplo em torno da morte.

III
Je vois la rivière qui fend la terre
et au loin le charretier rapide
pressé fait grincer les moyeux
fume un cigare Paraguassu
et dans la rivière voit la ville
si belle les jours de fête.
La rivière et le bourg
énigmatique pour l'étranger naviguent
dans l'espace du temps mystère
dans un périple autour de la mort.

IV
As pessoas se banham nas águas do rio
como se banhassem o próprio rio,
acariciando-o com seus corpos quentes.
Vigoroso, ele leva consigo o que a gente não quer,
não rejeita nem o que já não é,
nasce limpo, morre sujo,
reflexo das pessoas que também não são.

IV
Les gens se baignent dans les eaux de la rivière
comme s’ils baignaient la rivière elle-même,
la caressant de leurs corps chauds.
Vigoureuse, elle emporte en son sein ce dont on ne veut pas,
elle ne rejette même pas ce qui n’est plus,
elle naît propre, elle meurt sale
reflet des gens qui eux non plus ne sont pas.
Foto: Ceia Branca, Jomar Lima

domingo, 9 de agosto de 2009

Breve elegia para Zeca de Magalhães

pela passagem do seu cinquentenário

A vida entre livros e lendas
levou-te muito cedo, Poeta,
mas não levou a primavera.
Os cantos ainda florescem
e tua face límpida
vive em eterna manhã.
Tua existência libertária,
raio de metal forjado,
são versos perfurando o tempo.
É lâmina a tua anarquia,
fúria e ternura,
certeza de um ser entre feras.
E se e vida te impôs a morte,
deixou-nos, imortal,
a saudade em seu lugar.

Itabuna/ Ilhéus, 09 de agosto, 2009.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Três sonetos de Vinícius de Moraes

Neruda foi o primeiro poeta pelo qual me apaixonei, depois vieram outros, mas Vinícius é, sem dúvida, ao lado de Alberto da Cunha Melo, o poeta brasileiro que mais gosto. Sempre achei seus poemas de amor tão espetaculares que durante certo tempo deixei de escrever poema de amor, pois achava que depois de Vinícius nenhum poema de amor se justificaria. Mas isso é besteira. Já escrevi alguns, dos quais me orgulho. Entretanto, neste assunto, continuo achando que o poetinha é inalcansável, pois ele viveu intensamente o amor, de um modo reservado a poucos, muito poucos, por isso, esses seus poemas são considerados, de longe, seus melhores poemas.

Soneto de separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente

Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Oceano Atlântico, a bordo do Highland Patriot,
a caminho da Inglaterra, 09.1938

Soneto de fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive,
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure

Estoril - Portugal,
10.1939

Soneto do amor total

Amo-te tanto, meu amor... não cante

O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito e amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Rio de Janeiro, 1951

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Homenagem a Zeca de Magalhães

Neste 4 de agosto, meu amigo e poeta Zeca de Magalhães, completaria mais um ano de vida, 50 anos, não fosse a morte repentina, trágica e idiota. Um escorregão, do telhado de sua casa, onde subira para consertar uma goteira que insidia sobre sua biblioteca, a cabeça no chão e a saudade dos amigos. Foram dias de aflição aqueles, de orações, mas não teve jeito. Era carnaval e a tristeza imperava. É duro dizer algo mais porque o coração, a emoção não deixam. Melhor fez sua filha, Maíra.

Depois da morte, a poesia. Depois da poesia, a consciência:

“- as letras digitadas traduzem a frieza dessa madrugada enfumaçada / Chá e maconha despertam os resquícios poéticos, perdidos dentro de mim mesma / Depois da morte, a poesia / Depois da poesia, a consciência / Mastigo como um chiclete as palavras, apenas para satisfazer o meu vício de mascar a língua, para saborear os fonemas que um dia você recitou”.

Ele tinha muitos filhos, livros e sonhos, que já não mais cabiam nos seus bolsos e neste mundo. Não tinha mãos suficientes para segurar os tantos filhos. Conhecera o mundo muito depressa: através das palavras; dos olhos; da boca; dos ouvidos; do nariz e das finas e curtas pernas que perambularam pela estrada a fora neste país.
A sua necessidade era universal. O seu ritmo era emotivo. A sua palavra era a sua verdade – sua própria história. Fez de suas necessidades uma luta, deu ritmo às palavras, letra por letra (une) versalizou emoções.
Era constituído de verbo - duro de roer, de carne vermelha e sangue, de ossos descalcificados e músculos de expressões rígidas. Os olhos pequenos eram transparentes de sentimentos. O rosto marcado de rugas e cicatrizes adquiridas ao longo do tempo: dos amores; das angústias; das alegrias; das fomes e das loucuras. Da boca nervosa e inquieta saía uma voz grave e firme e palavras agudas. Gritava as dores de dentes e as dores do mundo.
A vida vivida é um elemento de suporte para a construção do argumento. Foi com a palavra que se tornou pai, poeta e professor. Foi com a palavra que conseguiu seu pão do dia-a-dia, seu prazer, seu ódio e seu amor. Difícil saber se era comandado pela palavra ou se a comandava. A linha que os separa é muito tênue. É uma relação dialética. Uma vida inteira dedicada à construção da própria. A sua busca era pela essência, as palavras eram instrumentos.
Com fé rezou e acendeu vela para o Fluminense e entes queridos. Com fé recitou nas praças, nos bares, becos, favelas e academias. Com fé casou-se. Com fé peregrinou pela BR com dor e poesia. Com fé em Santo Antônio casou-se de novo. Com fé vendia livros, nunca seus sonhos e verdades. Com fé tentou salvar seus livros e documentos amarelados, amassados e sujos, vítimas das goteiras de chuvas. Porém, não teve muito sucesso. Escorregou no telhado há muito molhado e caiu como o anjo que caiu do céu, bateu a cabeça e morreu.
Nem todos os punks, nem todos os beats, nem todos os marginais sobreviveram sustentando as mesmas vestes. Alguns mudaram de roupas, tomaram banho. Outros ficaram nus. Restaram poucos que se sustentaram sob as mesmas vestes e Zeca de Magalhães foi um deles. Em sua contradição e trajetória se (re) construía. Fez seus próprios livros, mesmo depois de ter dois publicados pelo Selo de Letras da Bahia, o “O nome do vento” (1998) e “A oeste do meu coração” (2004), não deixou de publicar seus livros feitos por ele mesmo, xerocados e vendidos de mão em mão. Ajudou ainda a publicar livros de muitos outros tantos poetas marginalizados no mundo da literatura. Porém, não fazia por caridade ou generosidade, mas por responsabilidade e filosofia.
Sempre andava depressa. Almoçava pão com mortadela e coca-cola, às vezes um sanduíche de pernil no comércio. Tomava um cafezinho na Praça da Piedade, muitas vezes a fiado. Fumava um cigarro Hollywood enquanto andava pelo centro histórico da cidade carregando livros, falando com todos sobre tudo, muito alto, gritando, gesticulando e sempre rápido. Competia com todos os transeuntes, sem os mesmos saberem, para ser o primeiro a entrar ou sair do elevador Lacerda, do bonde do plano inclinado, do ônibus, para atravessar a rua... A rotina era um jogo, matemático e lógico.
Tinha graduação na Praça da Cinelândia, mestrado na Praça da Piedade e doutorado na Praça da Sé. Faz agora pós-doutorado na ‘Praça do Céu da Poesia’. Para quem o conheceu sabe que Zeca, ou Kzé, ou Zequinha, foi para cada um e é para cada um, um. Uma lembrança, uma saudade, uma memória. Aqui expresso uma memória, desabafo uma saudade, re-construo para mim mesma um pai e um poeta. Uma história e um herói.
É com lágrimas nos olhos, com muita emoção, saudade, que tento exprimir minha maior verdade e sentimento: a poesia da qual eu nasci e cresci. É 4 de agosto de 2009 e o leão não está aqui para o felicitarmos. Sua matéria transmutou-se em palavras e nelas está vivo. Não tenho uma vela para acender... Acenderei um beck em sua homenagem: parabéns! Palmas ao poeta!

Maíra Castanheiro M. de Moraes
4 de agosto de 2009
Sítio Cidade das Estrelas – Muritiba/BA.
“Don’t let me down”...

Elegia para Charles Bukowski
Zeca de Magalhães

Ele dizia
que um poema
eram poetas
egoístas, amargurados
traduzidos
em loucos recados

Nove de março
eu tomava um porre
saudando outros
que tomastes em vida

Vomitei luas impossíveis
Fui de tudo
e fiquei sem nada
A madrugada crescia
na rua teus passos
desapareciam de nós

Vários porres
pelo porre
enquanto Bukowski
morre

Outros dois poetas formidáveis

Orientado pelo demasiado número de péssimos poetas oriundos de São Paulo, fenômeno causado, talvez, pela má assimilação (ainda hoje) do modernismo da primeira fase e das vanguardas, cheguei a afirmar que naquele estado não havia poetas. Um absurdo, um despautério de minha parte, pois eles existem, apesar de poucos. Há, inclusive, poetas paulistas que estão rol das minhas predileções. Um deles é Alberto da Costa e Silva, o outro é Paulo Bonfim. O primeiro, também é historiador e africanólogo, além de membro da Academia Brasileira de Letras; o segundo é jornalista e membro da Academia Paulista de Letras.
Alberto da Costa e Silva já venceu o Jabuti e em 2004 foi eleito o "Intelectual do Ano" pela União Brasileira dos Escritores. Paulo Bonfim recebeu a mesma deferência em 1982.
Do modernismo paulista os poetas aproveitaram apenas o que o movimento trouxe de bom, seu sentido de brasilidade e certa coloquialidade, não deixando os modismos lhes pregarem alguma peça. Aliás, ambos são rigorosos e muito bons poetas, como podemos comprovar.

AO LADO DE VERA
Alberto da Costa e Silva

Para que este amor, se o tempo abraça
o nosso abraço e o consome, e passam
as manhãs sem retrato, o sol ferido
pelo se pôr com o pousar das aves?

E para que, se, sendo encontro, parte
com nossos corpos e se faz viagem
solitária, obscura, ao céu do chão,
abrir de velas sobre um mar sem praias?

Mas quando o húmus se levanta em rosas,
a pergunta não mais chega às orelhas
e se dissolve no seu próprio eco,

pois sabemos o amor ser o que em nós
aspira ao oceano e às estrelas
e faz da morte um cisco sobre a mesa.

do livro “Ao lado de Vera”


Soneto I
Paulo Bonfim

Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonia.

Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.

Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha

Onde sonham morrer os albatrozes...
Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.

do livro “Transfiguração”

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Dois poetas formidáveis

Foi relendo uma entrevista concedida pelo temido crítico, diplomata, filósofo e sociólogo José Guilherme Merquior à revista Veja, em 1981, que travei contato com a obra de dois poetas formidáveis, Armando Freitas Filho e Mauro Gama, aos quais Merquior afirmou escreverem “magnificamente bem”.
Mesmo publicando há mais de 20 anos regularmente por uma grande editora, a Nova Fronteira, Armando Freitas Filho é um dos melhores exemplos para aqueles versos de Alberto da Cunha Melo: “...escrevemos cada vez mais/ para um mundo cada vez menos,/ /para esse público dos ermos/ composto apenas de nós mesmos.
Mauro Gama, que também é crítico literário, estudou letras clássicas e ciências sociais, em que se licenciou pela UERJ. Até o momento seus livros foram publicados esparsamente, mas sempre com boa recepção midiática.
Nada disso impediu que, pelo menos para mim, Armando Freitas Filho e Mauro Gama, até o início de Julho, não passassem de ilustres desconhecidos. Como diz o ditado: antes tarde do que nunca.

Matéria
Armando Freitas Filho

Parece que os séculos
cuidam dos castelos
que no alto das montanhas
são o sonho das pedras
ou o desejo das nuvens.
Escrever é uma pedreira.
Se me atirasse daqui
de uma de suas torres de marfim
cairia, talvez
inteiro
em corpo reduzido
na página de qualquer jornal.
Escrever é uma pedraria.

Horaciana
Mauro Gama

Goza os dias
- e as noites mais ainda - :
que sejam lindas
e iluminadas de sonho
ou sanha.
Goza as rosas
- e as framboesas -
de vertiginosas mucosas
os úteros telúricos as ursas
maiores e menores.
Goza os dias
em todas as suas vias
e vales avencas uvas.
Que não percas
nem as parcas
sementes das auroras inocentes
ou as frias
raízes da madrugada:
goza a integrada
natureza do todo
- da luz ao lodo.
Goza a prosa
e a poesia
que se espirala em tontas falas
de flor e fécula
cascata chocolate explosão
de abismos em néon
e grão
e bala
por galáxias e salas
deleitosas:
goza!
Nenhuma glosa
te disperse
nenhuma dor
te escureça - ou
rosa negra
te cegue.
Goza os dias
e se não todo o mundo
cada segundo
do que resta
da festa.

sábado, 1 de agosto de 2009

O poeta Bernardo Linhares

Postagem especial em comemoração à passagem do aniversário do poeta, neste 30 de Julho.

Bernardo Linhares, além de muito bom poeta é um amigo querido. Bom poeta, bom gourmet, testado e aprovado com louvor nas tarde/noites de oficina literária na casa da mestra Maria da Conceição Paranhos. Soteropolitano, da Barra, ao contrário da imensa quantidade de poetas esquálidos da nossa geração, se mostra criterioso e crítico, ainda um pouco distante da (a)ventura da publicação, apesar de já ter sido inserido em algumas coletâneas baianas. Entretanto, é provável que uma hora dessas o poeta apareça com um compêndio para nos apresentar, pois sua produção já é bastante volumosa e de qualidade.
Desejamos ao Bernardo Linhares muita alegria, prosperidade e paz. Nosso presente para ele é esse breve panorama de sua poesia.

CAROLINA

São rosas na bruma
buquê de gaivotas
por cima das águas
bordadas de espumas.

Com linha da costa
de seda tão pura
costuro tua moda
na vela do barco.

Ternura mais funda
os fios da corrente
revelam teus laços...

Cortando o silêncio,
um amor imenso
navega no vento.


O Sol

Ao Poeta Ruy Espinheira Filho

Depois da noite em chamas,
cantando nas espumas,
o mar ainda é rubro,
ouriçado de escamas.

Feito uma concha, rosa
secreta sob as ondas,
a lua fecha os olhos
e oculta a própria sombra.

No céu surge outra chama,
na chama vários tons,
nos tons todas as gamas.

O sol, concha amarela,
transforma a aurora escura
num céu de madrepérola.


Madrepérola

O céu também é madrepérola
no seio cálido da aurora;
as minhas mãos são duas conchas,
onde deslizam tuas pérolas;

são duas pérolas douradas,
brilhando assim, tranqüilas, claras;

em meio às luzes desse bálsamo
e o céu da boca à flor da pele,
levo nas mãos teu coração;

ao florir das primeiras horas,
teu seio é cálido na aurora.


Sertanejo

Para Miguel Carneiro

O anjo partiu enrolado na rede.
Cruzes entoam rosário de preces.
Reses perdidas procuram pastores.
Alma penada suplica por hóstia,

e o diabo é o sol queimando nas costas...
Carneirinho, Carneirinho meu santo,
lá, onde o inferno tem fome e fama
com a graça de Maria Imaculada,

teu pé no pó anda léguas de encanto,
terna imagem do azul, manto celeste.
Poema é curto, no cabo da enxada,

estalando dedos, fio de navalha.
Sementes são calos, não cicatrizes.
Meu santo, tuas mãos pulsam raízes.

Rapina

Para Zeca de Magalhães

Leque ríspido, incoercível pássaro,
asas abertas, navegando cactos,
seguindo a seca que fulmina os círios,
a rapina aterrissa em crucifixo.

Meia noite, pau d’arco, corre a lágrima
da carneira tábida, a nave mármore
com ossos no ninho, coroa e espinhos,
insere duas cruzes no epitáfio,

depois aponta o bico para o céu.
Mal aventurada, cruel, rapina,
fera faminta, infeliz e funérea.

Sua fúria desafia e fascina,
ela, que vigia no mundo a miséria,
a morte, amigo,é que ilumina a Terra.

Recado pro BL:
Jacaré, minha ida à Salvador ficou para a próxima semana. Vê se deixa umas geladas aí pra gente. Boa comemoração!